Férias!!!
quinta-feira, 23 de dezembro de 2010
25- Troféu Fahrenheit 451, retrospectiva, previsões e mar
Férias!!!
segunda-feira, 13 de dezembro de 2010
24- O impossível eu
segunda-feira, 29 de novembro de 2010
23- Os perseguidores
O biógrafo persegue Jonhy Carter: Cortázar persegue Charlie Parker: eu persigo Julio: você me persegue: e nós, todos, o que perseguimos? Uma linha tênue atravessa nossas biografias ainda que não saibamos para quê, para onde, em que direção vai, o momento em que ela deságua num abismo ou numa ponte. As nossas armas secretas continuam secretas embora haja sempre uma ligeira suspeita de que é sempre próxima a descoberta, e sempre próxima também a ilusão da finalidade disso tudo.Um pensamento é a maior distância entre dois atos. Ser um pouco com Cortázar ou ser como seus personagens nos dá o estatuto de seres afectivos. O que vem a ser isso que os personagens de Bergman também conhecem bem, ainda que com outros desdobramentos? Há a ação, há a reação: e esse intervalo entre a ação e a reação é aquilo que propriamente chamamos de espaços de afecção. Afecção é o tempo intervalar entre um momento e outro onde as coisas podem girar como um furacão ou podem só esboçar um espasmo imperceptível de movimento. Uma ameba raramente (trata-se, claro, de um texto um pouco fantástico também) possui tempo para afecção enquanto age e reage na sua existência de capturar os seus nutrientes necessários. E Claro, os personagens de Cortázar escolhem (escolhem?) sempre a opção do furacão. Como Pierre do conto As armas secretas do livro homônimo. Ou mesmo como Jonhy Carter do conto O perseguidor, ou Oliveira de Rayuela. Entre beijar ou não beijar Michèle um mundo fantástico se elabora que continuar a ação como ela começou é quase impossível. Frase sintomática de Pierre: "Já aconteceu de você pensar de repente em coisas completamente alheias às que estava pensando? Você devia me dar alguma coisa, uma espécie de objetivador." Sim, trata-se de um ser afectivo. E sim, tenho uma leve suspeita que sou também um deles. E os personagens de Bergman, a câmera de Bergman, não há outra possibilidade senão a de perseguir o rosto, esse território onde a afeção se determina, fronteira impenetrável entre a próxima ação indeterminada que o rosto quase discrimina. E quem, quem, pode dizer que não foi ao menos afectivo uma vez ao dia quando olhou tal rosto de mulher ou foi atingido pela hesitante ação de uma buzina em plena luz de meio dia? Quem entre um êxito e outro não hesita, não treme a alma?
sexta-feira, 19 de novembro de 2010
22- Ne me quitte pas, Amélie...
O que será que me afeta quando penso em Amélie? E mais, o que pode ainda me afetar quando escrevo sobre ela? Simplesmente não resisto, beiro o confessional, ainda que não o deseje. Não, obviamente não é um amor platônico, longe disso, faz tempo que já o superei, mas posso chamar o que sinto por essa menina aí do lado com uma colher interrogativa de "amor crônico". Sim, crônico porque geralmente o esqueço. Mas ele volta. E ataca. E afeta. E dura. E como uma dor que só se potencializa no frio - semblantes de geleiras em minha alma? Não, não... - ela subverte o natural estado das coisas.quarta-feira, 3 de novembro de 2010
21- A morfina do cotidiano
A literatura ou a vida é sempre uma pergunta mal formulada. Aqueles que escrevem sabem melhor disso do que aqueles que leem. Não se trata de um fato. Todavia, não se trata também de uma fatia que cabe à literatura cortar para que desse pedaço emane um clarão. É sempre em tom de conciliação que a literatura trata da vida, mesmo que para isso o meio seja a revolta. Escrever é - sempre- um caso de revolta. Alguma leitura também. Esse ano está sendo de intensa busca pelo novo. Aqui, ainda que não seja essa a regra, o novo é necessariamente o atual. Já conheci muita novidade que nasceu muito antes de mim. Disso podemos concluir que também a novidade só se dá nessa coisa disponível que são os encontros. Então, procurei neste ano quem nunca li. E olha que a lista é gigantesca...
Mia Couto, Tatiana Salem Levy, Roberto Bolaño, Muriel Barbery, Raduan Nassar, e agora Philip Roth. Acho que escrevi sempre um post sobre esses seguintes autores. Porém, quem me provocou este ano no campo da literatura foi mesmo a Tatiana e o Bolaño. Chegou a vez do Roth.
A literatura que me interessa é a do sôco no estômago. Claro, há sempre o encantamento, caso, por exemplo, do Mia Couto. Porém, é sempre um sôco no estômago que busco na literatura. Tendência ao masoquismo? Não, não, meu caro, é somente para fazer latejar algum órgão que já está entorpecido pela morfina do cotidiano. O que quero são porradas nos meus olhos para que deixem de ver as figuras tristes da vida que já morreram. O que quero são porradas na minha boca para que sintam pela ferida aberta um novo sabor da mistura do meu sangue com a vida. O que quero são porradas no meu coração para que palpite por alguma vida que ainda não conheço.
Então, autor bom é aquele que a gente lê uma obra e corre na livraria para comprar a próxima, quiçá, a bibliografia inteira e depois se virar com o cartão de crédito. Acabei de ler Indignação do Philip Roth e já quis ler todo o resto.
O mais incrível é ver como a indignação pode nascer da mais simples bondade, da incompreesão da retidão, da negligência por não perceber o objetivo do outro. Messner procura simples objetivos: escapar da Guerra da Coréia, escapar do pai obsessivo pela sua segurança, escapar da religião. Tudo o que ele não quer é ser incomodado numa segunda ordem já que a vida o havia incomodado antes. A história individual é sempre influenciada pelo destino do mundo, pela força dos acontecimentos históricos. A literatura de Philip Roth parece exatamente denunciar esse tipo de influência e a vulnerabilidade de todo homem comum, e no caso de Indignação, do homem jovem ainda em formação e toda a trepidação do destino que essa idade já deflagra. E a constatação é a do despreparo do homem comum em face dos grande acontecimentos históricos, dos acontecimentos coletivos. Claro, como sermos coletivos e ceder com primazia a um acontecimento coletivo se o que menos somos hoje é exatamente isso? O destino de Mesner é um destino de fuga diante do quase inevitável. Como não padecer ao destino coletivo em nome individual? E como seguir alheio a qualquer destino, inclusive ao mais distante?
Não vou contar o destino do herói do livro. Que esses meus textos sirvam sempre para apontar, para induzir sempre um novo sôco, para que a cabeça mergulhe sempre mais fundo na imaginação de ser. A tarefa aqui é sempre de conduzir. Quase uma mão segurando uma outra mão. E, nesse caso, eu mesmo me conduzo para os outros livros do Roth. Ainda que não queiramos, o destino do homem americano é muito próximo do nosso. Sofremos de muitas mesmas angústias, nós, os ocidentais. Os outros livros do Roth parecem apontar para angústias que ainda não sabemos diagnosticar.
Vamos, contra a morfina do cotidiano? Qual o próximo Roth? O próximo autor? O próximo livro? Quantos desencontros são necessários para, enfim, encontrarmos? E nunca é questão de contabilidade, mas de contratualidade com o que se encontra. A validade nos interstícios dos interesses. É isso que promove o tempo e o espaço dos desencontros, a duração e a largura dos encontros. Claro, um coração largo para suportar e amar sempre ajuda.
segunda-feira, 25 de outubro de 2010
20- O outro pé do Mia Couto
domingo, 3 de outubro de 2010
19- Por que ler este homem?
Quase não parece se tratar de um livro dessa vez, ainda que o seja. Uma coisa são os livros, outras são sempre os homens. Nietzsche extrapola essa questão como parece fazer com tudo. Quem lê Nietzsche não sabe se lê puramente uma filosofia. Ecce Homo é a prova desse difícil limiar. Último livro do filósofo, produzido perto de sua grande crise, a obra é quase uma sangria, expiação, comoção, que deflagra uma última tentativa de ser bem compreendido. Um pavor de fazerem de sua filosofia, e dele mesmo, algo inapropriado.terça-feira, 28 de setembro de 2010
18 - Entre um pré e um pós
É chegada a hora. Não cabe mais sentir o cheiro de pré-clímax na sua própria vida. Esse ar é aquele ar monótono onde se espera, o que quer que seja, sentado esparramado no sofá a olhar o relógio, segundo após segundo, arrumado com o seu melhor terno, pronto (para o quê?), tempo atrás de tempo. E no final do tempo, onde não há click, campainha ou chegada, retorna-se para o fundo do quarto, o fundo de si, o fundo em si, o fundo. Tempo atrás de tempo. E no final do tempo. E no final do. E no final. E no. E.
(A imagem não corta a cabeça do inimigo, mas sim a própria cabeça que se renova como um sempre diferente rabo de lagartixa todas as manhãs...)
terça-feira, 21 de setembro de 2010
17- Íntimos do movimento: potência e ato.
Ando pensando muito no conceito de Ato e Potência de Aristóteles. Somos feitos de matéria e forma. A matéria diz respeito a potência, a forma ao ato. A matéria espera a forma para ser real, é a forma que atualiza a matéria. Mas é esta quem determina a potencialidade da matéria, é ela quem anuncia os limites para que a forma atue. Até onde a forma vai depende, exclusivamente, da matéria, mas a matéria só alcança sua determinação com a forma. Não existe uma sem a outra. Mas, para que isso tudo?
terça-feira, 14 de setembro de 2010
16- Uma frase de Onetti
Ainda não me tornei um escritor de verdade. Daqueles que escrevem páginas e páginas por dia, horas a fio, trabalhando no papel ou na cabeça a arquitetura das palavras, fazendo valer com isso o nome que lhe chamam. Não sou nada disso. Ainda. Estou muito longe de ser. Mas é cada vez mais gratificante para mim sentar e escrever. Prova disso é que os cadernos começam a se acumular aqui dentro de casa... Porém, a cada trabalho ou tentativa de escrita sou, antes de mais nada, guilhotinado por mim. Coloco o papel na escadaria do cadafalso. Isso pode ser um problema pois, na medida em que mato a mim mesmo,acabo não criando nada. E ontem, participando da reunião semanal dos Clubes dos Pensadores de Niterói, o meu grande amigo e presidente do clube, Ayr Tavares, lança justamente uma frase que pinça o nervo do meu dilema: O excelente é sempre inimigo do bom. E vocês já entenderam o porque, não é? A gente almeja tanto a perfeição pelo pensamento que acaba não criando nada. E isso, tenho certeza, não é bom.
O que estou realmente buscando é o equilíbrio entre o dizer bem, a tagarelice e o silêncio.
Mas essa frase de Onetti é um conselho para qualquer escritor. Drummond já sabia disso. E alguém já me disse que não foram de palavras que a Ilíada foi feita. Se isso for verdade, quero cada vez mais escrever sem as palavras, nos interstícios da linguagem, atravessando o silêncio, na borda de cada letra. Escrever parece sempre ser algo que beira a impossibilidade. Talvez seja isso escrever: beirar a verdade de cada coisa. A palavra mais próxima do silêncio que no seu hálito brumoso nos dá algo quase invisível e que no entanto existe. Buscar as palavras mais próximas do silêncio, então, será isso?
segunda-feira, 30 de agosto de 2010
15- O riso da verdade + Sofía e Rímini
Quem me conhece nos assuntos literários sabe que gosto de uma determinada reação quando se lê algo muito valioso. Acaba de se ler uma frase e o que acontece? Rimos. A nossa boca corre para o lado, alarga-se como se estivesse tomada de uma euforia e grande luz. Isso é o que gosto de chamar do riso da verdade. Rimos de espanto ou de torpor quando encontramos uma bela verdade. Ou talvez nem isso, rimos quando encontramos uma bela iluminação, um princípio de voo que nos salta do senso comum das ideias, num aforismo, num poema, num trecho de romance. É só vocês puxarem um pouco pela memória, vai? Vai me dizer que só eu que tenho essa reação quando vejo uma bela verdade? Vão me deixar sozinhos? Não, né? É só lembrar.quinta-feira, 19 de agosto de 2010
14- Os buracos da realidade
Acabo de reler Nove noites, do Bernardo Carvalho, agora motivado pelo Clube de Leitura Icaraí (grupo novo que está me acolhendo tão bem e que está gerando novos frutos existências, da mesma forma que o Clube dos Pensadores de Niterói). E a frase que ficou martelando na minha cabeça durante todo o livro foi: a literatura gosta de se embrenhar nos buracos deixados pela realidade. A literatura como arte de criar caminhos ainda não dominados pelo olhar do homem. Uma descobridora de espaços virgens, de territórios da alma ainda não cartografados. A literatura como devir, como movimento para tornar-se além do que se é. A literatura é contra o cansaço de existir. A literatura como movimento de fabulação para o homem ser mais, ir além do homem, para além, para além do mundo, para criar novos mundos e novas possibilidades de vida. A literatura é uma busca com caminho só de ida.sexta-feira, 13 de agosto de 2010
13- Palavras como poeira...
Continuo a fazer as minhas leituras habituais, aquelas que programei já a um tempinho. Os Diálogos de Platão, a Ilíada de Homero, a Metafísica de Aristóteles, continuo nessa aventura que é descobrir um mundo antigo, o mundo grego, e trazer dele ainda muito sentido. Trago também muitas diferenças, muitas inquietações de como o homem mudou e de como, também, o homem continua o mesmo. Mas são inquietações que ainda não merecem ainda palavras precisas. E, convenhamos, já falei um bom tempo sobre os gregos por aqui. E já ficou chato, né? Bem, o negócio é o seguinte. Não tenho a menor ideia do que escrever, não vim com nenhum propósito, não tenho inquietação nenhuma, nem deslumbramentos.Isso é também importante. Mesmo aqueles de alma inquieta e encantada gostam também de um período de marasmo total, sombra e água fresca, uma vista para o mar e nada para pensar. Não? Eu gosto. Ultimamente ando sendo tocado por uma certa serenidade. Um olhar um pouco mais complacente comigo mesmo, um vagar contínuo sem sustos e assombros, mas que mantêm a sua profunda forma de observar o movimento do mundo e o seu silêncio. Nunca tive uma semana tão serena e exemplar. Gostei dela. Mas também não vou gostar muito que ela fique se repetindo. Ora bolas, chega uma hora que até o exemplar cansa.
quinta-feira, 29 de julho de 2010
12- Inquieto encanto
Pergunto-me como algo pode encantar e inquietar por tanto tempo. Penso nisso, por exemplo, quando estudo Platão e no meio da República me deparo novamente com o Mito da Caverna. É sempre inquietante ler a sua descrição eterna de nós mesmo, da condição eterna de seres rodeados pelas sombras e pela imperfeição do conhecimento. Sempre, independente do que sabemos, é bom compreendermos isso, habitaremos sempre essa caverna e esse mito de que nos fala Platão. Tolos são aqueles que, por algum motivo, posto, mérito,conhecimento, prática, creem que saíram da caverna. Não saíram. Nunca sairão. Ainda que julguemos saber, todo o nosso saber é poeira cósmica diante do todo que se configura a aprendizagem. Sempre nos falta. A fabricação do não-ser (não o nada, mas a diferença que se expõe nas coisas já por não ser o ser que somos) é infinitamente maior do que aquilo que podemos realizar no tempo de nosso ser. O ser é sempre pouco para o não-ser que habita em nós como potencialidade do diferente. Isso ao mesmo tempo que assusta, acalma. Encanta e Inquieta. Sim, somos aquilo que nos configura. Mas dá para ser mais. Sempre mais. Sim, não somos o todo mas podemos ser e ter uma parte. E nessa participação no todo somos já muitos. E por ai vai...
sexta-feira, 23 de julho de 2010
11- Memória, poesia e história
No átimo de tempo onde o homem possui uma consciência, ele entrevê a sua finitude, não como espécie, mas como indivíduo, e é também a partir dessa consciência de si que o homem pode vislumbrar uma tentativa de ultrapassar essa linha efêmera de vida que o relega ao destino do esquecimento. Algo no homem sugere uma outra forma de permanência que não aquela sugerida pela circularidade da vida das coisas da natureza que, tal como nos aponta Hannah Arendt, no mundo grego, conferia um status de imortalidade. O homem contesta esse caráter de imortalidade construindo para si um material que preservaria, no sentido e até onde no tempo o homem perdurasse, os feitos e as falas significativas, dignas da memória, no qual ele pudesse angariar para si uma sabedoria e uma experiência.É de grande valia a análise de Hannah Arendt sobre as questões da origem da poesia e da história em seu livro Entre o passado e o futuro, principalmente quando ela nos relembra a passagem onde Odisseu (ou Ulisses) escuta os seus próprios feitos na Guerra de Tróia na corte dos Feácios. Estaria ali na Odisséia a origem da história e da poesia condensadas em uma passagem? Mais do que apenas um grande exemplo, o que podemos extrair desse trecho é o caráter incontestável de busca no mundo grego pela preservação da ação e da fala, seja através da mitologia, da história, da poesia ou da filosofia.
Seja na forma poética ou histórica, o que está em jogo é o que vale a pena recordar do mundo e do homem. O que vale recordar para ultrapassar a práksis e léksis para ganhar o estatuto de história e poesia? Porque o homem busca escrever para obter uma outra relação de experiência com a vida? Entre tantas respostas possíveis podemos dizer que o homem faz poesia ou história para penetrar no ser. Penetra-se mais quando o homem volta para si mesmo sem, no entanto, deixar de penetrar naquilo que o circunda e que lha dá o limite de suas condições, ou seja, a natureza.
domingo, 11 de julho de 2010
10- Diálogos do ser
Ei. Olha para mim. Agora olhe para essas palavras, você que me lê. Agora esqueça tudo isso...olhe para você. Nada mais interessa. Olhe para o seu fora, aquilo que nos aparece. Olhe para o seu dentro, aquilo que é o sumo do que vemos, ainda que não totalizado, mas que pulsa como potência para a realidade.Sócrates caminha na sua utopia. E como ele todos os filósofos. Mas o primeiro desafio, antes de construir, é derrubar, destruir. Arrancar do outro que o que se fez dele ainda não é nada. Maior é o que ele pode fazer consigo mesmo. Porque não é de hoje que somos forjados mais com matéria imposta, passivamente ou não, de que com matéria criada e sabida como nossa. Quebra do princípio de originalidade: somos tão pouco nós mesmo. Bem menos do que a gente imagina. Sempre mais históricos, sempre mais hereditários, sempre mais outro que mesmo. Então, Sócrates quebra. E aqueles que se permitem tal desonra do que se é - mas qual eu? - num primeiro passo recua, mas depois avança como nunca. És outro, sendo de ti.
segunda-feira, 28 de junho de 2010
9- Congruências
Qual é o grande desafio quando se decide falar sobre um livro? E o pior, qual é o desafio quando se decide escrever algo de novo sobre um livro que está na moda, que muita gente leu e que, cada um a seu jeito, soube tirar do livro o essencial? Bem, o livro de que trato é A elegância do ouriço da filósofa francesa Muriel Barbery.Antes de escrever esse texto percorro os inúmero blogs que tratam do livro. E eles dizem mais ou menos a mesma coisa: um pouco à moda de cada um o tema do livro. Mas encontrei uma variação interessante no http://peregrinacultural.wordpress.com/2008/07/08/a-elegancia-do-ourico-muriel-barbery/, a variação que aborda o jogo de imagens que faz Barbery em relação com os quadros do Magritte. E a suposição de que o nome da personagem principal, Renée, seja uma homenagem ao pintor. E desta homenagem uma pista interessante para se percorrer o romance.
E a dica vale. É sem dúvida no jogo do ocultamento que o romance encontra um dos seus principais motes: eu sou; mas a minha aparência não diz realmente o que eu sou. E você que me olha com a sua ideia de mim, que não se mantém apenas no presente mas em todo o estereótipo da visão, é incapaz de dizer além do que vê, é incapaz de supor além do visível um mundo. Uma metafísica da existência se vislumbra para além da normalidade do ser, para além do cotidiano, para além de meras concierges e crianças. Assim, Paloma e Renée juntas. Juntas como sempre estiveram. Mas além desse jogo de espelhos partidos onde o que se vê é sempre outro, onde a crítica do olhar é sempre severa (e aqui vale fazer uma singela homenagem ao Saramago que na epígrafe do Ensaio sobre a cegueira nos diz: Se podes olhar, vê. Se podes ver, repare. Nessa importância de ter olhos quando todos os demais cegaram...), onde o que é oculto parece dizer mais que o explícito, onde a profundidade ganha da superfície é que a escritora francesa aponta para as congruências da existência...
Que congruência? Esse é um dos títulos de um dos capítulos do romance. E é dele que tento partir para abordar o romance. Mas antes de tentar escrutinar as congruências do romance quero apontar pequenos souvenirs literários que em nada mudarão a leitura ou releitura do romance. Bijuterias, portanto, para o apetite da alma: 16 de junho é o dia que Paloma decide se matar. É justamente nesse dia que é desenrolado todo o romance Ulisses de James Joyce. Bijuteria de camelô: James Joyce escolheu esse dia para tecer o romance porque foi num 16 de junho longínquo que ele conheceu a sua mulher Nora Joyce. Será que ela se deu conta disso?
Bem, isso não tem a absoluta relevância.
Outra congruência é com Albert Camus. Também um filósofo que escreve romances. E ele mesmo diz que para filosofar era preciso escrever romances. E ela o faz muito bem. Paloma parece, desde o princípio possuir essa afinidade (eletiva?) com a filosofia de Camus. A vida não tem sentido, ela é absurda por excelência e, simplesmente, não vale a pena viver. Camus, no Mito de Sísifo, começa com essa questão. Não interessa mais nada, se a vida tem cinco ou dez dimensões, se a alma tem cinco ou dez vida, nada disso importa, o que vale a pena saber é se essa vida, a única vida que temos a absoluta certeza de existir, vale a pena ou não.
É para colocar a vida no limiar do abismo que Paloma escreve os seus pensamentos profundos e movimentos do mundo. É desse ato de olhar para escrever, e para escrever é preciso olhar além do olhar às coisas, que Paloma consegue extrair da vida as congruências que a fará não mais desistir da vida. E o que percebemos da natureza da congruência é que para acontecer ela exige essa harmonia natural que a faz perpétua e frívola, no tempo exato de cada coisa. Significativa é a passagem em que Paloma encontra o THE movimento. Nele, ela encontra a sua lei que a protagonista perseguiu durante todo o romance, a perfeição de alguma coisa que valesse a pena viver:
"Eu, ao olhar aquela haste e aquele botão, intuí num milésimo de segundo a essência da Beleza. Sim, eu, uma pirralha de doze anos e meio, tive essa chance inacreditável porque, hoje de manhã, todas as condições estavam reunidas: mente vazia, casa calma, lindas rosas, queda de um botão. E foi por isso que pensei em Rosard, sem muito compreender no início: porque é uma questão de tempo e de rosas. Porque o que é bonito é o que captamos enquanto passa. É a configuração efêmera das coisas no momento em que vemos ao mesmo tempo a beleza e a morte.
Ai, ai, ai, pensei, será que isso quer dizer que é assim que temos de viver a vida? Sempre em equilíbrio entre a beleza e a morte, o movimento e seu desaparecimento?
Estar vivo talvez seja isto: espreitar os instantes que morrem" (Pág.: 293)
E quão difícil é, e cada vez mais, habitarmos este instante em que todas as condições estão favoráveis para realmente captarmos uma epifania nas pequenas coisas...talvez numa viagem com cabelo ao vento conseguimos olhar para uma paisagem e sentir o movimento e seu desaparecimento com essa eternidade e frivolidade natural dá própria essência do tempo....talvez...
Se Paloma procura a congruência do mundo, a harmonia das coisas belas (Kant, na sua Crítica da faculdade de juízo diz que o belo é a harmonia, é o acordo tácito entre as nossas faculdades, a comunhão dos sentidos que o objeto sentido faz... - estou simplificando demais o Kant, coitado, deve estar socando o túmulo de tanta raiva de mim... mas é porque acho que esse texto vai ficar longo demais e você já deve estar se cansando dele...), Renée vive, mesmo sem saber, essa harmonia do destino, a congruência da beleza enredada em si.
Toda literatura é uma doença, todo livro é um livro doente, na voz de Antônio Lobo Antunes. No contraponto intrínseco, toda literatura é uma saúde, uma renascimento, uma tentativa, uma linha de fuga para sair do lugar em que se está. Movimento do ser pela escrita, pela invenção de personagens e dos afectos.



