Acabo de reler Nove noites, do Bernardo Carvalho, agora motivado pelo Clube de Leitura Icaraí (grupo novo que está me acolhendo tão bem e que está gerando novos frutos existências, da mesma forma que o Clube dos Pensadores de Niterói). E a frase que ficou martelando na minha cabeça durante todo o livro foi: a literatura gosta de se embrenhar nos buracos deixados pela realidade. A literatura como arte de criar caminhos ainda não dominados pelo olhar do homem. Uma descobridora de espaços virgens, de territórios da alma ainda não cartografados. A literatura como devir, como movimento para tornar-se além do que se é. A literatura é contra o cansaço de existir. A literatura como movimento de fabulação para o homem ser mais, ir além do homem, para além, para além do mundo, para criar novos mundos e novas possibilidades de vida. A literatura é uma busca com caminho só de ida.
É assim que o narrador de Nove noites parte. Ele vai. E para saber o porque do suicídio do etnólogo americano, Buell Quain, no Brasil, ele não cessa de criar. A verdade do suicídio e as suas motivações, dentro da realidade, é objeto fracassado. O autor sabe, nós que o lemos sabemos também. Mas, então, para que ler o romance - ou ainda, para que criá-lo - se a verdade está fadada a morrer pelo caminho? É aqui que descobrimos que a literatura trabalha para muito além da verdade.
Se o Bernardo Carvalho estivesse realmente preocupado com a verdade não escreveria um romance. Ainda que o romance seja um duplo relato, um que podemos chamar de mais real que o outro (os depoimentos de Manoel Perna) a linha é sempre tênue. Está tudo misturado. E, para aqueles que leram ou lerão o romance, digo uma coisa: se existisse prova definitiva das motivações da morte do etnólogo não haveria romance. O suicídio de Buell Quain é um desses buracos deixados pela realidade que a literatura se apropria para criar.
Bernardo Carvalho sabe disso e nós dá grandes pistas para que isso se revele, num jogo metalinguístico sobre sua própria criação, na narração de Manoel Perna: "Vai entrar numa terra em que a verdade e a mentira não têm mais os sentidos que o trouxeram até aqui"; "As histórias dependem antes de tudo da confiança de quem as ouve, e da capacidade de interpretá-las"; "Só a verdade poria tudo a perder". E tantas outras citações interessantes que remetem a esse jogo que valem a pena serem sublinhadas no romance...
Porque é sobre a arte de criar e de fabular, da relação entre ficção e realidade, que se trata o romance. Da vontade de se escrever e de subverter a realidade pela escrita quando nada mais nos resta. A verdade sobre a morte de Quain vai, aos poucos, se desfazendo em outras teias.
Mas, claro, o destino de Buell, a sua solidão, é impossível não sermos tocados pelo seu destino. Todos nós somos solitários. Todos. Ainda que povoados de gente ao redor. Ainda que lotados de almas interiores, chega um momento da noite da vida em que só há o nosso próprio hálito diante de um espelho deserto, às vezes, não há nem o espelho... Sabemos que quando o homem nasce firma um contrato até a morte com a solidão. E, sim, a imagem do Quain e sua incomunicabilidade nos afetará, um dia ou outro, quando nós mesmos nos sentirmos um pouco desérticos e incompreensíveis...
Bernardo Carvalho em uma de suas entrevistas nos diz que o livro é também sobre a paternidade, que ela está latente, de um modo ou de outro, em todas as partes. Os índios, órfãos da civilização, o narrador e a sua relação desafetiva com o seu, o próprio Quain, afinal. Todos estão um busca do seu ou de algo que o substitua. Agora me pergunto se o narrador ou qualquer artista que cria, ou mesmo nós leitores, não somos também órfãos da realidade? E se nessa nossa falta, imersos nessa realidade que também sempre falta, não estamos a inventar, criando ou percebendo, algo melhor que a própria paternidade da realidade...
O artista é feito de buracos cravados pela realidade. O artista vê também buracos na parede da realidade. É nela que ele entra. É ele também um criador de buracos onde ninguém imaginava. É ele que, ao invés de abrir a porta, entra por onde ninguém ainda sabia ser possível. É ele, também, um criador de buracos no céu negro do guarda-chuva para fazer entrar um raio de sol, um ar, uma gota de chuva...
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Nessa arte de se criar buracos, temos também outro exemplo. Alan Pauls, escritor argentino, está escrevendo uma trilogia de romances sobre a ditadura ocorrida em seu país. Como escrever sobre algo eternamente debruçado e documentado? Pelos buracos possíveis inventados pela literatura. Assim, ele compõe a sua trilogia pela tangente da realidade, pelas veias abertas da sensibilidade. História do pranto (já lançado no Brasil), História do cabelo (em tradução) e História do dinheiro são os novos buracos inventados por Alan Pauls. Vale a pena dar uma olhada na produção desse grande escritor contemporâneo.
Bela leitura! Belo texto! Parabéns!
ResponderExcluirEmbaralhar a ficção com a realidade é uma forma dos povos de terceiro e quarto mundo se vingarem do colonizador. Isso também acontece nas narrativas de Mia Couto. Não li Nove noites, mas já ouvi o relato de uma médica que trabalhou com índios de que eles realmente fazem isso. É a reação legítima ao golpe sufocante do etnocentrismo. Porque a gente só os imagina como passivos e ingênuos. Mas eles tem suas armas, setas envenenadas que conduzem à morte, ainda que seja o induzimento ao suicídio, ao deixar o civilizado num beco sem saída, encalacrado.
ResponderExcluirOlá amigo,
ResponderExcluircomo vc. dissecou lindamente "Nove noites"...adorei!
Por favor, não deixe de levar esta postagem para a nossa reunião do dia 3/9, tenho certeza que as pessoas vão gostar muito.
José, você excedeu minhas expectativas. Muito bom comentário.Parabéns! Sua sensibilidade para literatura é imensa!
ResponderExcluirAbraços,
Eloisa
JM, lendo a sua matéria sobre "Nove Noites" fiquei pensando "como escreve bem esse menino tão novo e tão brilhante ...". É de fazer o queixo cair, sabia ? Ao iniciar a leitura de Nove Noites , confesso que estranhei o estilo do Bernardo Carvalho, ficando sem saber quem era quem na narração. Aí ficava a todo momento voltando à página anterior. Depois fui me acostumando e a leitura fluiu e me encantou. Depois lendo uma estrevista dele, gostei de saber que ele gosta mesmo de jogar o leitor num labirinto de dúvidas: "é real a história? "; "é ficção, mesmo tendo pessoas reais no livro, inclusive ele próprio, o autor?" "tem dois narradores, sendo que um é o próprio autor do livro?". Nessa mistura ficção/realidade ele realmente surpreende. Gostei tanto que pretendo ler outros livros do Bernardo Carvalho. Beijos .... Angela.
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