quinta-feira, 29 de julho de 2010

12- Inquieto encanto

Pergunto-me como algo pode encantar e inquietar por tanto tempo. Penso nisso, por exemplo, quando estudo Platão e no meio da República me deparo novamente com o Mito da Caverna. É sempre inquietante ler a sua descrição eterna de nós mesmo, da condição eterna de seres rodeados pelas sombras e pela imperfeição do conhecimento. Sempre, independente do que sabemos, é bom compreendermos isso, habitaremos sempre essa caverna e esse mito de que nos fala Platão. Tolos são aqueles que, por algum motivo, posto, mérito,conhecimento, prática, creem que saíram da caverna. Não saíram. Nunca sairão. Ainda que julguemos saber, todo o nosso saber é poeira cósmica diante do todo que se configura a aprendizagem. Sempre nos falta. A fabricação do não-ser (não o nada, mas a diferença que se expõe nas coisas já por não ser o ser que somos) é infinitamente maior do que aquilo que podemos realizar no tempo de nosso ser. O ser é sempre pouco para o não-ser que habita em nós como potencialidade do diferente. Isso ao mesmo tempo que assusta, acalma. Encanta e Inquieta. Sim, somos aquilo que nos configura. Mas dá para ser mais. Sempre mais. Sim, não somos o todo mas podemos ser e ter uma parte. E nessa participação no todo somos já muitos.

O mito da caverna nos abre a perspectiva para a eterna inquietação filosófica. A crua atitude do olhar atento. Não é por acaso que a questão do conhecimento está intimamente ligada à questão do olhar. O próprio mito da caverna é uma prova disso, ainda que Platão desconfie sempre do sensível e do olhar. E é por desconfiar do sensível e do que dele nos chega que Platão pode ver mais. Olha...aquilo que você vê pode não ser assim...pode mudar...pode estar influenciado pelo seu sensível (que é mutável)...e olha...a coisa também muda...o movimento é sempre um espanto no qual temos que cravar a desconfiança do conhecimento.Olhou, viu, observou. Agora, retorne o olhar, veja de novo, observe...e agora? Onde está o conhecimento e a verdade? É sempre inquietante. Uma obsessão encantadora. Por isso é que, cada vez mais, quem já viu, quem já saiu (ou pensa que saiu) da caverna, não pode voltar atrás, não pode fechar os olhos.Quem já viu determinadas coisas pesadas dessa vida sabe do que estou falando. Como fechar os olhos e não escrever sendo um Dostoiévski? Como? Não...o degrau do conhecimento ultrapassado se desintegra tornando a volta (a ingenuidade de não saber) um caminho impossível. Quem lida com o conhecimento e com a sensibilidade que nos faz conhecer mais - a aposta no sensível como na razão é sempre uma alternativa para chegar - percebe que é de irremediáveis voltas que o nosso caminho é traçado, a cada verdade na cara, a cada morte anunciada, a cada fome, a cada vazio. Essa inquietação diante das verdades flutuantes que descobrimos passo a passo. Esse encanto diante de cada erro destecido para se tornar novamente verdade. Esse inquieto encanto diante de tudo.

E a atualidade é um voraz produtor de novas cavernas...
E do encontro com as verdades os nossos olhos ainda mais sangrentos por ter visto o invisível...
E novos olhos anestesiados por novas sombras...
E por ai vai...

sexta-feira, 23 de julho de 2010

11- Memória, poesia e história

No átimo de tempo onde o homem possui uma consciência, ele entrevê a sua finitude, não como espécie, mas como indivíduo, e é também a partir dessa consciência de si que o homem pode vislumbrar uma tentativa de ultrapassar essa linha efêmera de vida que o relega ao destino do esquecimento. Algo no homem sugere uma outra forma de permanência que não aquela sugerida pela circularidade da vida das coisas da natureza que, tal como nos aponta Hannah Arendt, no mundo grego, conferia um status de imortalidade. O homem contesta esse caráter de imortalidade construindo para si um material que preservaria, no sentido e até onde no tempo o homem perdurasse, os feitos e as falas significativas, dignas da memória, no qual ele pudesse angariar para si uma sabedoria e uma experiência.

É de grande valia a análise de Hannah Arendt sobre as questões da origem da poesia e da história em seu livro Entre o passado e o futuro, principalmente quando ela nos relembra a passagem onde Odisseu (ou Ulisses) escuta os seus próprios feitos na Guerra de Tróia na corte dos Feácios. Estaria ali na Odisséia a origem da história e da poesia condensadas em uma passagem? Mais do que apenas um grande exemplo, o que podemos extrair desse trecho é o caráter incontestável de busca no mundo grego pela preservação da ação e da fala, seja através da mitologia, da história, da poesia ou da filosofia.

Seja na forma poética ou histórica, o que está em jogo é o que vale a pena recordar do mundo e do homem. O que vale recordar para ultrapassar a práksis e léksis para ganhar o estatuto de história e poesia? Porque o homem busca escrever para obter uma outra relação de experiência com a vida? Entre tantas respostas possíveis podemos dizer que o homem faz poesia ou história para penetrar no ser. Penetra-se mais quando o homem volta para si mesmo sem, no entanto, deixar de penetrar naquilo que o circunda e que lha dá o limite de suas condições, ou seja, a natureza.

É nesse duplo espelhamento através da poesia e da história que o homem pode atravessar a ponte entre o instante e o eterno, mesmo sendo este eterno do tamanho da natureza do homem.É nesse sentido que podemos dizer que a poesia e a história cravam uma memória dentro da consciência do homem para além de sua memória habitual. A memória cravada é a memória lapidada e inspirada daquilo que no instante soube transcender, numa espécie de ressonância, num sentido. Não é qualquer ato ou fala que se transforma, não é tudo que é digno da memória. O esquecimento é um espetáculo que se representa todas as noites, como nos diz Wilhelm Jensen. Podemos dizer que a memória do que é digno de ser recordado requer trabalho, mas não um trabalho qualquer: evocar a memória é antes evocar também os meios pelos quais o objeto ganha para si a coloração que realçara a plenitude que, imerso no instante, ele não pôde perceber ou realizar. A poesia e a história são os esmeros do homem para o homem. É nessa busca, nesse trabalho infindável, que o homem tem a chance de não permitir que haja uma lacuna entre o passado e o futuro, como bem apontou Hannah Arendt, que ele possa se fazer coeso e livre, fruto do passado e da memória.

A memória feita pela história e pela poesia é o grande tecido vital pela qual a vida, não esquecendo dos componentes de que ela é feita, preservando a sua matéria, pode restituir e iluminar, regenerar e tornar híbrida a existência que um dia foi perdida. Poesia e história como grandes seivas terrestres capazes de irrigar com plenitude os feitos e falas dos homens, presentes, passados, futuros.

domingo, 11 de julho de 2010

10- Diálogos do ser

Ei. Olha para mim. Agora olhe para essas palavras, você que me lê. Agora esqueça tudo isso...olhe para você. Nada mais interessa. Olhe para o seu fora, aquilo que nos aparece. Olhe para o seu dentro, aquilo que é o sumo do que vemos, ainda que não totalizado, mas que pulsa como potência para a realidade.

Isso. Olhe novamente para você, dessa vez com um olhar cerrado, profundo, como quem procuro na extensão do horizonte uma iluminação. É mero detalhe que você esteja lendo essa página porque o que interessa nunca esteve aqui. É de você que falo. É de você que deve escutar a voz.

"Conhece-te a ti mesmo": frase inscrita no pórtico do oráculo de Delfos e que Sócrates entende e introjeta como sua missão. A partir de agora devo conhecer a mim mesmo. Não seria essa a missão de todos? Mas antes de nos analisarmos parece que estamos invocados com os defeitos dos outros. Ah...se fosse fácil mudar a nós mesmos...e nesse nosso hábito de criticar queremos mudar antes o mundo...e esquecemos de nós...Ah...se fosse fácil mudar a nós mesmos...O quanto é que você conseguiu mudar em você, hein?

Mas Sócrates está lá no oráculo para saber se é o homem mais sábio do mundo. E a Pitonisa pergunta: o que você sabe? Sócrates: só sei que nada sei. Pitonisa: és o mais sábio de todos os homens. Primeiro passo: reconhecer a ignorância. Segundo: sabendo algo, que isso é pouco, muito pouco. A partir daí buscar a si mesmo. As duas frases "só sei que nada sei" e "conhece-te a ti mesmo" estão unidas mais do que nunca, como elevação para a busca (de quê?). A verdade. Mas não como lugar último e iluminado onde de lá não se sai e nem quer sair. A verdade como processo e utopia. E uma vez escutei de um uruguaio, que por sua vez escutou de outro, no seguinte diálogo: a utopia serve para quê? Primeiramente, para nada. Mas lembre-se que ela é como o horizonte. Ele está lá. E queremos alcançá-lo, lindo, onde tudo se promete. Mas a cada passo que damos em sua direção ele recua. A cada dez passos mais, mais ele se afasta. O horizonte como verdade em fuga . Mas para quê, então? Para isso, caminhar. E ponto.

Sócrates caminha na sua utopia. E como ele todos os filósofos. Mas o primeiro desafio, antes de construir, é derrubar, destruir. Arrancar do outro que o que se fez dele ainda não é nada. Maior é o que ele pode fazer consigo mesmo. Porque não é de hoje que somos forjados mais com matéria imposta, passivamente ou não, de que com matéria criada e sabida como nossa. Quebra do princípio de originalidade: somos tão pouco nós mesmo. Bem menos do que a gente imagina. Sempre mais históricos, sempre mais hereditários, sempre mais outro que mesmo. Então, Sócrates quebra. E aqueles que se permitem tal desonra do que se é - mas qual eu? - num primeiro passo recua, mas depois avança como nunca. És outro, sendo de ti.

Mas quem hoje se permite abalar as estruturas? Quem é humilde o suficiente para dizer que até hoje não se conhece direito? Quem? Não é de se estranhar que Sócrates fez muitas inimizades, e que por causa dela foi julgado e condenado. Mas quem é que suporta tamanha ironia? Pois o danado do Sócrates sabia das coisas. Claro que sabia, ora bolas. Essa é a sua maior ironia. Mas depois de passada a ironia vem a graça. No momento exato em que o outro se permite ver - no diálogo - de que precisa do outro para saber. Mas de que é capaz, também, por si de ir onde quiser. No diálogo, sempre no diálogo, a filosofia afirma o outro para ser ela mesma. Aprendemos com a filosofia um modo ser. Ela que pretende saber tudo, sabe que não sabe nada. Que tudo ainda é muito pouco. Que sempre nos falta...diálogos do ser...e o homem quando se comunica já precisa do outro, mesmo que para caminhar sozinho, e ser.

Ei. Olhe para essas palavras. Mas olhe para você. E assim vamos, juntos.