quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

25- Troféu Fahrenheit 451, retrospectiva, previsões e mar

Absolutamente mais tentador do que ler uma página de um livro é dar um bom mergulho no mar. Ah, para quem não percebeu, estou já no clima de férias, verão, praia, futvolei, frescobol, todas essas coisas que me compõem. Quem disse que dentro de um ser não pode residir vários? Quanto mais reconheço a pluralidade que habita em mim mais me aproximo da vida e de sua verdade. Estou tão em clima de férias que quase não quero falar sobre livros. Mas como não falar desses bichinhos apaixonantes que me rodeiam diariamente? 

Claro, é a hora da retrospectiva e dos vislumbres futurescos. Começar pelo passado é quase uma ordem. Mas que filósofo gosta de seguir a ordem natural das coisas? Então, ao futuro.

Regra número 1 para a realização dos meus desejos literários: ler todas aquelas obras clássicas que até hoje tive medo de enfrentar. Ta certo, para algumas eu, confesso, ainda não estava preparado. Mas hoje me sinto pronto para devorar tudo. Ano que vêm as leituras serão grandes, não só na qualidade, mas na quantidade também. Vou enfrentar Ulisses, me perder no labiríntico Rayuela, ler e realmente entender o Borges que já li, subir novamente na Montanha mágica de Thomas Mann, e sim, o esperado 2666 do Bolaño; e tantos outros. Todas as leituras iniciadas em algum tempo da minha vida e que desisti no meio do caminho. 2011 é um ano de retomada. Chegou a hora de enfrentar os grandes, os clássicos, engolir o que a vida tem de melhor. Por que se poupar diante do prazer com o medo de não sobrar nada depois? Foi isso que fiz de mim até agora. Mas a vida, a vida sempre sobra. Schopenhauer tinha razão. A vida é, antes de tudo, vontade. E ela jamais acaba. Nós acabamos antes. Por isso, como já disse: devore-se. Um pouco como a Esfinge, só que diante da vida. Decifre e devore a vida. Se não, ela te devora.

O ano foi de ótimas descobertas. E para celebrar essas descobertas invento o troféu Fahrenheit 451. Troféu homônimo ao filme do Truffaut (por favor François, não me cobre direitos autorais!). Bem, para quem não viu o filme eu explico. No final, cada homem que adorava ler e que conseguiu escapar da perseguição policial (eles queimavam os livros!!) escolhia um livro para decorar inteirinho. Assim, os policias podiam queimar os livros, pois estes residiam agora no homem. Como eu queria ter essa capacidade de decorar os livros e tê-los inteiros e eternos na minha alma! Entenderam? Pois é isso: qual o livro do ano que valeria apena interiorizar e colocar eternamente dentro de mim?

Como essa resposta é dificil. Como aqui não dá para delinear a dimensão do tempo que me angustiei até me decidir qual, já adianto que saí da cadeira, fui na cozinha, voltei, escutei umas quinze músicas, e só agora pareço me decidir. Ainda com ressalvas. Espera. Acho que vou mudar. Mudei. Mudei de novo. Agora escolho outro que ainda não tinha pensado. Acho que agora sim, então vai. É esse, Zé? Tem certeza? Não. Mas como tenho que escolher apenas um, aqui vai: Ecce Homo. Em segundo lugar ficou O outro pé da sereia. Completando o pódium: Clarice,.

Porém, vocês sabem que essa história de superlativos é a maior bobagem, né? O Nietzsche já havia nos alertados quanto ao perigo dos superlativos. E quando o superlativos tangem a arte e as pessoas, ele é desnecessário. Mas, sim, decoraria o Ecce homo com muito gosto.

Pronto, já falei dos livros. Agora vou falar das férias. Quais livros vou levar para ler, sabendo que lerei muito pouco ou quase nada, que o mar irá vencer, que os amigos irão vencer, que os esportes irão vencer? Estou levando Anna Kariênina; a nova biografia do Nietzsche; O ano da morte de Ricardo Reis; O mundo como vontade e como representação; Pequenos Amores, Crítica da Razão Pura. Quanta ambição para as férias, não? Mas vou tentar, pelo menos, terminar a Anna.

No fundo, o que quero é o mar e tudo aquilo que ele reprensenta. O mar e o magnetismo que ele exerce em mim. O infinito e aquilo que dele consigo tocar. A liberdade de me ser. Os outros. Os outros de mim mesmo. A vida. Os arredores.

Feliz Natal para todos que me leem. Feliz ano novo!
Férias!!!

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

24- O impossível eu

Este texto não sairia não fosse o fato de eu ter visto uma entrevista com o Paulinho Moska falando sobre Zelig, filme do Woody Allen, não fosse o fato de eu ter assistido o próprio filme e se, durante todo esse ano, eu não tivesse sido tocado pela obra do Fernando Pessoa e pelas pessoas que gostam do poeta português. Tudo está no Pessoa. Tudo. E algo permeia todos esses personagens de que falei. Além, claro, daquilo que me inquieta e atravessa.

Zelig é um ótimo personagem, exagerado, na sua mania de se apropriar das qualidades das pessoas que estão próximas. Perto de um chinês, ele se torna chinês. Perto de um zé, ele se torna um zé (ainda que eu não saiba o que venha a ser isso exatamente...). Perto de você, ele se tornará você, tal e qual. O que me chama atenção no Zelig é a sua capacidade de ser outro. Mesmo que para isso ele acabe não sendo ninguém, nem ele mesmo. O Zelig é o exagero da despersonificação e da outridade. Mas, quem é que não sente um pouco de inveja de ser um Zelig, em possuir um pouco dessa sua capacidade de ser outro e, para falar com o Pessoa, ser plural como o universo?

A questão da identidade e da impossibilidade que ela condiciona. As formas possíveis de ser que, em nome daquilo que a gente chama de "eu", são trancafiadas em nome do próprio nome. Suspeito muito de que essa história de "eu" é uma invenção que veio a ser no homem como forma de habitar a existência. O princípio de identidade de Parmênides acabou vencendo o devir contínuo de Heráclito. Quem disse que a filosofia é sempre inatual, mesmo a antiga? Um conceito torna-se real na mendida em que o trabalhamos e o colocamos na vida. Então, tornamo-nos escravos da nossa memória de sermos nós mesmos? E esquecemos as possibilidade de ser que em nós lateja? Quantos "eus" existem e que não tomam vida na existência? O quanto você castra de sua possibilidade em nome de sua história, identidade e nome? A questão construída não é a do ganho em ser um só, mas da perda em não poder ser vários.

Fernando Pessoa. Tudo está no Pessoa e todos estão no Pessoa. O quanto ele nos mostrou da potência de ser! O que é o seu projeto literário calcado nos heterônimos se não essa mensagem: amigo, você que é real, que acredita no real, pode superá-lo. Você, inclusive, pode superar a si mesmo deixando-se ser, ser como os outros, ser como as coisas, o universo inteiro, afinal, sem o prejuízo de se perder ao ser tantos. Olhe, capture, aprenda com uma planta, uma pedra, um pássaro, o outro que você ama ou odeia, mas aprenda que o outro é sempre possível. O outro é sempre maior que o eu, e por isso possível, e talvez mais real que isso que você chama de real e de "eu". Não perca tempo nas amarguras de ser, nos ressentimentos que envolvem a vida, de ter nascido assim e não outro, recrie-se e extrapole o ressentimento, a mágoa de não ser ou não ter sido, o que talvez importa é sempre o passo adiante, a porta adiante a se abrir, a abertura que nós mesmos criamos como invenção de um novo mundo. Eu posso ser eu, o outro, e todo o meio, a ponte, aquilo que trafega e flutua entre o presente o passado e o futuro. Eu, não mais uma invenção que me fecha, mas uma abertura para outros "eus". Devir, tornar-se, a mudança, é sempre mais real que a identidade e o imobilismo. Não há nunca o mesmo "eu", ainda que se queira, durante os dias e as horas. 

Romper com o nascimento da carne, como gosta de escrever Deleuze. Criamos nós mesmos novos nascimentos e novos rompimentos, até muito mais do que achamos, estamos sempre a colocar novas datas, novos motivos e desejos, nisso que chamamos "identidade". A identidade pode ser um péssimo hábito de se lidar apenas e constantemente consigo mesmo.

Ano novo chegando, abrindo novas portas e formas de ser. Formas que ainda não conheço e que amarei encontrá-las. No fundo, quem não gostaria de ser do tamanho do mundo para nutrir toda a vida que há na existência. Um corpo, um tempo, um eu: é sempre muito pouco para o tamanho da vida. Então, antes que a terra nos coma, vamos fazer como o Cazuza: canibais de nós mesmos. E mais, canibais da vida, do outro. 

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

23- Os perseguidores

O biógrafo persegue Jonhy Carter: Cortázar persegue Charlie Parker: eu persigo Julio: você me persegue: e nós, todos, o que perseguimos? Uma linha tênue atravessa nossas biografias ainda que não saibamos para quê, para onde, em que direção vai, o momento em que ela deságua num abismo ou numa ponte. As nossas armas secretas continuam secretas embora haja sempre uma ligeira suspeita de que é sempre próxima a descoberta, e sempre próxima também a ilusão da  finalidade disso tudo.

Com que objetivo caminha uma melodia? Da mesma forma caminha o homem. E uma nota pode arrastar a memória para uma fotografia que perigosamente leva a um pássaro que automaticamente nos encaminha para o outro lado do mundo, outra memória, outro destino que pode até ser o mesmo. Uma melodia de jazz, um improviso, uma pausa de mil compassos: não creio que estou falando de algo bem distante do nosso mais íntimo cotidiano. 

O universo da literatura de Julio Cortázar nos leva exatamente para essas dobras do ordinário onde tudo pode ceder, descambar, iluminar. O homem que caminha na corda bamba e que consegue atravessar o picadeiro é quase sempre o destino mais improvável. A riqueza dessa travessia é se deixar balançar e fazer acontecer os mais improváveis movimentos. Sim, certo, a queda, a probalidade da queda, o seu ar trágico, o seu ar delicioso também. Nós, os perseguidores, gostamos de andar na corda bamba com outros propósitos. Quanto maior o movimento mais bonito o andar, quanto mais lúdico, melhor a queda.

Um pensamento é a maior distância entre dois atos. Ser um pouco com Cortázar ou ser como seus personagens nos dá o estatuto de seres afectivos. O que vem a ser isso que os personagens de Bergman  também conhecem bem, ainda que com outros desdobramentos? Há a ação, há a reação: e esse intervalo entre a ação e a reação é aquilo que propriamente chamamos de espaços de afecção. Afecção é o tempo intervalar entre um momento e outro onde as coisas podem girar como um furacão ou podem só esboçar um espasmo imperceptível de movimento. Uma ameba raramente (trata-se, claro, de um texto um pouco fantástico também) possui tempo para afecção enquanto age e reage na sua existência de capturar os seus nutrientes necessários. E Claro, os personagens de Cortázar escolhem (escolhem?) sempre a opção do furacão. Como Pierre do conto As armas secretas do livro homônimo. Ou mesmo como Jonhy Carter do conto O perseguidor, ou Oliveira de Rayuela. Entre beijar ou não beijar Michèle um mundo fantástico se elabora que continuar a ação como ela começou é quase impossível. Frase sintomática de Pierre: "Já aconteceu de você pensar de repente em coisas completamente alheias às que estava pensando? Você devia me dar alguma coisa, uma espécie de objetivador." Sim, trata-se de um ser afectivo.  E sim, tenho uma leve suspeita que sou também um deles.  E os personagens de Bergman, a câmera de Bergman, não há outra possibilidade senão a de perseguir o rosto, esse território onde a afeção se determina, fronteira impenetrável entre a próxima ação indeterminada que o rosto quase discrimina. E quem, quem, pode dizer que não foi ao menos afectivo uma vez ao dia quando olhou tal rosto de mulher ou foi atingido pela hesitante ação de uma buzina em plena luz de meio dia? Quem entre um êxito e outro não hesita, não treme a alma?     

Porém, a ação é irremediável. Não dá para morarmos nesse intervalo. Temos que escolher uma delas como encontro ou como fuga. Uma ação que determina a nossa luta, a nossa lupa, a busca.  O que o melhor saxofonista de jazz procura em suas notas, em seu virtuosismo? Jonhy Carter, Charlie Parker, eu (sim, toco sax), o que vibra em nós quando atravessamos uma harmonia com o mais alucinado sopro? O que há, afinal, no fim da melodia? Provavelmente nada. Talvez aqui esteja o cerne disso tudo. Não é necessariamente pelo meio que chegamos a determinado fim. Ainda que seja por essa instrumentalização da vida que somos obrigados a caminhar.

Da mesma forma: para que ler todos os bons livros do mundo, escrever todas as histórias possíveis e fantásticas, salvar todos os homems, proteger a nação, proteger o homem, filosofar, jogar, amar? O que buscamos no fundo disso tudo, desses gestos todos, nós, os perseguidores? Plenitude, sabedoria, riqueza da alma, paz, dinheiro, fama, cronópios, um olhar amoroso para sempre nos dizer o quê, o quê? Qual é essa imagem que buscamos e que nos redimirá diante de todo o nosso destino? Não se enganem, todo mundo busca uma imagem, um rosto, uma memória, um passado, um acontecimento que transfigure o seu destino. Quantos artificios podemos inventar para iludir aquilo que realmente buscamos, quantas formas podemos constituir a nossa alma para nos aproximar daquilo que realmente queremos. Quantas máscaras, quantas cores, nós, os camaleões da existência? E pode ser que mais próximos ficamos da coisa procurada quanto mais usamos máscaras, quanto mais despistamos os outros de nossa busca íntima, porque só nós mesmos é que podemos agarrar essa matéria informe de nossa busca. O destino é sempre da ordem do instransferível. O gozo de ser a sua própria melodia e a vibração que isso provoca no mundo. Daí todo gozo frustrado do plágio de buscar o que o outro foi, alcançou, existiu. A linha que nos une é tênue, mas o destino da linha é sempre o da tangente, obrigatoriamente.

Jonhy Carter passou longe, Cortázar pode ser que sim, e eu não tenho ainda a menor ideia do que persigo com tanta fúria no corpo através da arte e da filosofia e em todo o resto, em todo gesto. Mas amo perseguir essa coisa improvável que nunca encontrarei. E aqui não há sinais de pessimismo, porque não encontrar não é sinal de pessimismo.  E se encontrar o que procura, acalma-se, isso é incomunicável. 

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

22- Ne me quitte pas, Amélie...

O que será que me afeta quando penso em Amélie? E mais, o que pode ainda me afetar quando escrevo sobre ela? Simplesmente não resisto, beiro o confessional, ainda que não o deseje. Não, obviamente não é um amor platônico, longe disso, faz tempo que já o superei, mas posso chamar o que sinto por essa menina aí do lado com uma colher interrogativa de "amor crônico". Sim, crônico porque geralmente o esqueço. Mas ele volta. E ataca. E afeta. E dura. E como uma dor que só se potencializa no frio - semblantes de geleiras em minha alma? Não, não... - ela subverte o natural estado das coisas.

Não lembro qual foi o ano em que vi O fabuloso destino de Amélie Poulain, mas sei que depois dele há uma sucessão quase regrada de minha visita - anualmente, isso é certo - para rir e chorar nas suas expressões e cores, jogos e melancolias. Tento descobrir aqui uma lei: qual é o estado do meu espiríto que me evoca a retirá-lo da prateleira e assistí-lo com um transbordamendo que se recria cada vez mais. 

Ah, Amélie...talvez você funcione para mim como um arquétipo que busco na mulher amada e em mim mesmo. Um eterno jogo lúdico com a vida, a grandeza das pequenas ações, as pequenas invenções do pensamento, essa transcendência do destino que pode ser feita aos poucos e cotidianamente. Fazer com que um anão de jardim viaje para mostrar ao pai que é possível a vida até no imobilismo; jogar com a sua paixão um jogo de tabuleiro que se faz na rua para encontrar em fim a mulher amada; inventar amores possíveis, reconstituir fotografias, cartas, para se encontrar apenas um enigma desnecessário que só encontra a sua utilidade no ato mesmo da criação; devolver uma caixa com relíquias antigas de um menino para um senhor que também já não necessita dela. E aqui encontramos a verdade de Amélie e, se quiserem levar para o lado confessional, a minha também: nunca ninguém precisa de jogos, cartas, fotografias, anões, mas só essas "desnecessidades" é que contornam o todo que é necessário. O afeto é o halo que possibilida a visão do sol.

Não cesso de buscar esse halo, de inventá-lo, no mundo e em mim e, claro,  naquilo que chamo de amor. A minha paixão pela arte e pela filosofia torna essa halo cada vez mais intenso de cor e brilho. Tornar a arte a potencializadora dos meus próprios afetos. Ta aí, sempre quando me acho muito rústico, brutamontes, um ambicioso talvez, é que preciso de Amélie. A humildade das pequenas buscas é que talvez nos torne grandes.

Todo idealização é um erro, já sabem disso, não é? Frustração na certa, pode crer. Não quero idealizar Amélie, colocá-las em outras, nem dela extrair o maior destino de todos. Quero apenas percorrer o meu destino sem esquecer do nosso eterno jogo possível com a vida. Procurem os pequenos jogos, os pequenos prazeres, entrem num devir-pequeno para ver com o microscópio o nosso real tamanho. Mínimos, múltiplos, comuns, um, nenhum, cem mil. Podemos ser todos, nenhum, múltiplos, comuns, depende apenas do tipo de jogo que você quer travar com a vida. Ah, e sabendo sempre que ganhar ou perder é sempre provisório e o que vale a pena são os dados lançados e a batida acelerada do coração quando eles estão no ar. Lançar os dados, lançar os dados...

Ne me quitte pas, Amélie. Não esquecer do seu destino e do seu jogo, dos seus prazeres. São todos meus. Amélie é contra a imposição do ordinário que vai se encruando na nossa pele, nos nossos dias, no nosso modo de olhar. Eis a nossa lúdica batalha, repleta, no entanto, de gravidade. Novamente, escrevo para não esquecer.  

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

21- A morfina do cotidiano

A literatura ou a vida é sempre uma pergunta mal formulada. Aqueles que escrevem sabem melhor disso do que aqueles que leem. Não se trata de um fato. Todavia, não se trata também de uma fatia que cabe à literatura cortar para que desse pedaço emane um clarão. É sempre em tom de conciliação que a literatura trata da vida, mesmo que para isso o meio seja a revolta. Escrever é - sempre- um caso de revolta. Alguma leitura também.

"A vida é a arte do encontro embora haja tanto desencontro pela vida", já dizia o nosso Capitão do Mato, Vinicius de Moraes. O mesmo serve para a literatura. Quantos livros já abandonados no meio do caminho por não ser encontrado no momento certo? Da mesma forma os nossos amores inacabados? Quantas pessoas na hora errada, perfeitas talvez, mas na hora errada, no lugar errado. É muito mais no tempo que no espaço que os encontros se equivocam.

Esse ano está sendo de intensa busca pelo novo. Aqui, ainda que não seja essa a regra, o novo é necessariamente o atual. Já conheci muita novidade que nasceu muito antes de mim. Disso podemos concluir que também a novidade só se dá nessa coisa disponível que são os encontros. Então, procurei neste ano quem nunca li. E olha que a lista é gigantesca...

Mia Couto, Tatiana Salem Levy, Roberto Bolaño, Muriel Barbery, Raduan Nassar, e agora Philip Roth. Acho que escrevi sempre um post sobre esses seguintes autores. Porém, quem me provocou este ano no campo da literatura foi mesmo a Tatiana e o Bolaño. Chegou a vez do Roth.

A literatura que me interessa é a do sôco no estômago. Claro, há sempre o encantamento, caso, por exemplo, do Mia Couto. Porém, é sempre um sôco no estômago que busco na literatura. Tendência ao masoquismo? Não, não, meu caro, é somente para fazer latejar algum órgão que já está entorpecido pela morfina do cotidiano.  O que quero são porradas nos meus olhos para que deixem de ver as figuras tristes da vida que já morreram. O que quero são porradas na minha boca para que sintam pela ferida aberta um novo sabor da mistura do meu sangue com a vida. O que quero são porradas no meu coração para que palpite por alguma vida que ainda não conheço.

Então, autor bom é aquele que a gente lê uma obra e corre na livraria para comprar a próxima, quiçá, a bibliografia inteira e depois se virar com o cartão de crédito. Acabei de ler Indignação do Philip Roth e já quis ler todo o resto.

O mais incrível é ver como a indignação pode nascer da mais simples bondade, da incompreesão da retidão, da negligência por não perceber o objetivo do outro. Messner procura simples objetivos: escapar da Guerra da Coréia, escapar do pai obsessivo pela sua segurança, escapar da religião. Tudo o que ele não quer é ser incomodado numa segunda ordem já que a vida o havia incomodado antes. A história individual é sempre influenciada pelo destino do mundo, pela força dos acontecimentos históricos. A literatura de Philip Roth parece exatamente denunciar esse tipo de influência e a vulnerabilidade de todo homem comum, e no caso de Indignação, do homem jovem ainda em formação e toda a trepidação do destino que essa idade já deflagra. E a constatação é a do despreparo do homem comum em face dos grande acontecimentos históricos, dos acontecimentos coletivos. Claro, como sermos coletivos e ceder com primazia a um acontecimento coletivo se o que menos somos hoje é exatamente isso? O destino de Mesner é um destino de fuga diante do quase inevitável. Como não padecer ao destino coletivo em nome individual?  E como seguir alheio a qualquer destino, inclusive ao mais distante?

Não vou contar o destino do herói do livro. Que esses meus textos sirvam sempre para apontar, para induzir sempre um novo sôco, para que a cabeça mergulhe sempre mais fundo na imaginação de ser. A tarefa aqui é sempre de conduzir. Quase uma mão segurando uma outra mão. E, nesse caso, eu mesmo me conduzo para os outros livros do Roth. Ainda que não queiramos, o destino do homem americano é muito próximo do nosso. Sofremos de muitas mesmas angústias, nós, os ocidentais. Os outros livros do Roth parecem apontar para angústias que ainda não sabemos diagnosticar.

Vamos, contra a morfina do cotidiano? Qual o próximo Roth? O próximo autor? O próximo livro? Quantos desencontros são necessários para, enfim, encontrarmos? E nunca é questão de contabilidade, mas de contratualidade com o que se encontra. A validade nos interstícios dos interesses. É isso que promove o tempo e o espaço dos desencontros, a duração e a largura dos encontros. Claro, um coração largo para suportar e amar sempre ajuda. 

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

20- O outro pé do Mia Couto

Certamente, o outro pé do Mia Couto crava sua pegada no encantamento. O um, deve ser como os de todos, dorme, almoça, janta, calça sapatos, sandálias, se esparrama na areia, se fere com um prego, etc e tal. O outro não se deixa jamais abater. Antes, abate. Sem armas, sem guerras, com um artifício que não estamos acostumados a lidar. Sim, o outro pé do Mia Couto crava sua pegada no encantamento. E com ele, faz a gente caminhar para lá, pegada atrás de pegada.

Saí da leitura do livro O outro pé da sereia um pouco aturdido, meio sem saber o que dizer (ainda continuo sem saber). O nosso amigo moçambicano sabe nos arrebatar numa simples frase. Assim, como quem não quer nada, no meio da narrativa, ele solta a digníssima frase que nos faz gargalhar por dentro. São, tantas e tantas, que o meu livro está mais sublinhado do que limpo. A tentação de transcrevê-las aqui é grande. Até porque, preciso ocupar espaço para ocultar a minha falta de dizer. Será que resisto até o fim?

Mas, além das frases, o encantamento parece ser a matéria vital de que os personagens são feitos. E parece ser a matéria também da África que conhecemos no romance. Nunca estive na África, talvez seja o lugar cujo conhecimento mais me falta. Talvez faltem a todos. Talvez também seja o lugar mais propício para a poesia. A verdade que dela evola, que nos sopra nos ouvidos. Uma verdade muito mais bonita do que todas as outras, mais ingênua, mais feliz. Os personagens vivem de forma poética. E explicam o mundo através da poesia. Os ausentes, as fotos, a estrela, Nzuzu, Lázaro Vivo, Constança, Mwadia...quanta explicação poética para as durezas do mundo, as mortes, o abandono. Chegou a hora de colocar um pouquinho das frases para rechear o espaço com belas iguarias poéticas do nosso Mia (grande amigo que me ajuda a suprir a minha total falta de imaginação para abordá-lo...):

"A viagem não começa quando se percorrem distâncias, mas quando se atravessam as nossas fronteiras interiores. A viagem acontece quando acordamos fora do corpo, longe do último lugar onde podemos ter casa." (pág. 65)

"A saudade é a única dor que me faz esquecer as outras dores." (pág. 75)

"Salvar é uma grande palavra. E o amor é uma palavra ainda maior. Grandes palavras escondem grandes enganos." (pág. 93)

"Queremos ter o gosto de usufruir sem a responsabilidade de possuir." (pág.143)

"Só temos como nossos os filhos que são infelizes. Os outros, os que gozam de felicidade acabam se afastando em suave dança com a vida." (pág. 168)

"A saudade é uma tatuagem na alma: só nos livramos dela perdendo um pedaço de nós." (pág. 192)

"A gente ama alguém que desconhecemos, casa com quem conhece e vive com uma pessoa irreconhecível. Às vezes, temos luas-de-mel, outras vezes, luas melosas. A maior parte do tempo, porém, são noites sem luar nenhum." (pág. 314)

Ta bom, né? Já deu para curtir um pouco da genialidade do nosso amigo africano, né? E digo: não é toda genialidade que é bem humorada. Então, andem depressa para correr atrás do pé do Mia... 

Conhecemos a África pela sua terra. Não, no Mia há sempre uma parcela de água a percorrer as difíceis rachaduras da vida. Na água os seres são praticamente eternos moventes, sem ponto de repouso. Podemos dizer que o pensamento poético é o mais aquoso de todos os pensamentos, a fluidez, o indeterminável, as ondas que nele habitam. A África é terra fértil para a poesia porque recheada de água. A água é uma boa arma para a rigidez de certos pensamentos cravados na terra. Água é poesia.

Acima de tudo, o autor da vez nos chama atenção para uma seguinte coisa: a verdade que a poesia inaugura.  Há a filosofia, a ciência, e nos acostumamos às verdades que elas possibiltam. Mas a verdade da poesia ficou distante da nossa realidade. Quem hoje se habilita a explicar algum fato com alguma poesia. Não, não é nem de longe de poetas e poemas que falo, mas de invenções, muito próximas, talvez, àquelas explicações ingênuas das crianças (que de ingênuas não tem absolutamente nada). O filósofo alemão, Walter Benjamin, sabe disso melhor que eu. Um exemplo, não do Benjamin, mas dessas crianças que ele evoca e que por acaso habitam também a minha vida:
- Júlia, você vai dormir de óculos?
- É Zé...é para enxergar melhor o sonho...   

domingo, 3 de outubro de 2010

19- Por que ler este homem?

Quase não parece se tratar de um livro dessa vez, ainda que o seja. Uma coisa são os livros, outras são sempre os homens. Nietzsche extrapola essa questão como parece fazer com tudo. Quem lê Nietzsche não sabe se lê puramente uma filosofia. Ecce Homo é a prova desse difícil limiar. Último livro do filósofo, produzido perto de sua grande crise, a obra é quase uma sangria, expiação, comoção, que deflagra uma última tentativa de ser bem compreendido. Um pavor de fazerem de sua filosofia, e dele mesmo, algo inapropriado.

É um ótimo livro para se iniciar o trato com a sua intragável filosofia. Perigosamente, é claro. A obra alterna momentos de grande lucidez e grande desvarios que já apontam o que viria a seguir em sua vida. Mas ela é um retrato da trajetória de seu pensamento. E aqui vemos como é tênue a linha entre homem e obra, doença e saúde. O livro é um elogio a saúde através da crise.

Ninguém foi mais pessoal do que Nietzsche ao escrever filosofia. A linguagem inflama, queima, faz a gente sair do livro. A escrita própria para encostar na pele da vida, de nós mesmos. Através dela sabemos o quanto pode uma escrita e o quanto podemos. O quanto somos também inflamáveis. Perigo de ser ler Nietzsche: ele pode fazer a gente queimar antes da hora. E o filósofo já sabia que qualquer fanatismo seria prejudicial, inclusive para lê-lo. Um fanatismo que ele não tinha e que não desejaria que ninguém tivesse. É sempre cauteloso ler Nietzsche com um instintor de incêndio ao lado para poder se queimar na medida certa. Um bom exercício para escritores e leitores de plantão.

Seria totalmente trágico uma tentativa de abordar toda a temática do livro aqui. Plural, ele não se deixa pegar em qualquer forma. Frases que brilham como o sol, um clima de verão em pleno inverno. Uma luta constante com aquilo que se é. Não é leviano o subtítulo do livro: como alguém se torna o que é. Tornar-se o próprio destino é tão difícil como se equilibrar na corda bamba. Isso Nietzsche sabe muito bem. A duras penas tornou-se aquilo que foi. Mesmo que para isso tenha sido ou desejado por tanto tempo aquilo que depois lutou contra, a filosofia de Schopenhauer, a música de Wagner, o romantismo, o idealismo.

Nietzsche é contra tudo aquilo que diminui a força da vida. A vida é vontade de potência. Não é o homem que possui a vontade de potência, é a vida.  Daí a sua luta contra a metafísica, o idealismo, o cristianismo. Para ele, os valores criados por essas ideias retiram da vida a sua força e a força do homem.O ressentimento não é senão isso, vontade de que a vida seja outra coisa que não ela mesma, que nela não haja dor, drama, tragédia. Com isso, se entende a aproximação de Nietzsche com Dionísio, a divindade que não cessa de nascer e morrer, sempre renascido, sempre dolorido, mas que nunca sente vontade de não nascer jamais. A tragédia grega inicia com os Ditirambos, cantos em honra a Dionísio, esse ser eternamente renascido. O herói trágico é aquele que aceita o seu destino. Que não desonra a vida por ela conter tudo. O homem desonra a vida quando deseja eliminá-la, purificá-la, em nome de uma outra realidade, de uma outra ideia. A ideia do eterno retorno é um desdobramento que nasce já no Nascimento da tragédia.  

A filosofia de Nietzsche é uma saúde, penosa talvez, no meio de tanta crise. Mas Nietzsche não seria quem é se não aceitasse a sua própria crise. A sabedoria de Nietzsche é aceitar a vida. Fácil, né? Nada. Muito difícil. Não cessamos de criar artifícios para nos livrar da dor, do medo de viver. A filosofia sabe disso. Não é porque sou filósofo que me abstenho de também criar artifício. Sou antes também um criador de artifícios. O difícil é não criarmos artifícios para evitar a dor. Sempre nos acolhe um certo medo mórbido que nasce dentro da gente. Ainda que temida é a dor que nos dá o conhecimento que não temos. Deleuze em sua filosofia fala que o pensamento só se dá na coação, quando forçado a ultrapassar. A natureza da dor é ultrapassar.

Ler Nietzsche é uma saúde. Uma saúde que emerge do trágico. Sabemos ser trágico e tirar dessa nova relação com a vida uma nova perspectiva de saúde? No Ecce homo, o filósofo vira e mexe anuncia-se não como filósofo, mas como fisiologista, interessante, não? A proximidade com o corpo, a proximidade com os instintos, com a natureza. A filosofia de Nietzsche é uma filosofia que diz SIM. Mesmo que para isso tenha que criticar, que dizer muito Não àquilo que desmerece a vida. É dele a maior crítica aos nossos últimos dois mil anos. A filosofia de Nietzsche é um grande renascimento. Quem tem coração bastante para isso? É o que pergunta Zaratustra....