quarta-feira, 3 de novembro de 2010

21- A morfina do cotidiano

A literatura ou a vida é sempre uma pergunta mal formulada. Aqueles que escrevem sabem melhor disso do que aqueles que leem. Não se trata de um fato. Todavia, não se trata também de uma fatia que cabe à literatura cortar para que desse pedaço emane um clarão. É sempre em tom de conciliação que a literatura trata da vida, mesmo que para isso o meio seja a revolta. Escrever é - sempre- um caso de revolta. Alguma leitura também.

"A vida é a arte do encontro embora haja tanto desencontro pela vida", já dizia o nosso Capitão do Mato, Vinicius de Moraes. O mesmo serve para a literatura. Quantos livros já abandonados no meio do caminho por não ser encontrado no momento certo? Da mesma forma os nossos amores inacabados? Quantas pessoas na hora errada, perfeitas talvez, mas na hora errada, no lugar errado. É muito mais no tempo que no espaço que os encontros se equivocam.

Esse ano está sendo de intensa busca pelo novo. Aqui, ainda que não seja essa a regra, o novo é necessariamente o atual. Já conheci muita novidade que nasceu muito antes de mim. Disso podemos concluir que também a novidade só se dá nessa coisa disponível que são os encontros. Então, procurei neste ano quem nunca li. E olha que a lista é gigantesca...

Mia Couto, Tatiana Salem Levy, Roberto Bolaño, Muriel Barbery, Raduan Nassar, e agora Philip Roth. Acho que escrevi sempre um post sobre esses seguintes autores. Porém, quem me provocou este ano no campo da literatura foi mesmo a Tatiana e o Bolaño. Chegou a vez do Roth.

A literatura que me interessa é a do sôco no estômago. Claro, há sempre o encantamento, caso, por exemplo, do Mia Couto. Porém, é sempre um sôco no estômago que busco na literatura. Tendência ao masoquismo? Não, não, meu caro, é somente para fazer latejar algum órgão que já está entorpecido pela morfina do cotidiano.  O que quero são porradas nos meus olhos para que deixem de ver as figuras tristes da vida que já morreram. O que quero são porradas na minha boca para que sintam pela ferida aberta um novo sabor da mistura do meu sangue com a vida. O que quero são porradas no meu coração para que palpite por alguma vida que ainda não conheço.

Então, autor bom é aquele que a gente lê uma obra e corre na livraria para comprar a próxima, quiçá, a bibliografia inteira e depois se virar com o cartão de crédito. Acabei de ler Indignação do Philip Roth e já quis ler todo o resto.

O mais incrível é ver como a indignação pode nascer da mais simples bondade, da incompreesão da retidão, da negligência por não perceber o objetivo do outro. Messner procura simples objetivos: escapar da Guerra da Coréia, escapar do pai obsessivo pela sua segurança, escapar da religião. Tudo o que ele não quer é ser incomodado numa segunda ordem já que a vida o havia incomodado antes. A história individual é sempre influenciada pelo destino do mundo, pela força dos acontecimentos históricos. A literatura de Philip Roth parece exatamente denunciar esse tipo de influência e a vulnerabilidade de todo homem comum, e no caso de Indignação, do homem jovem ainda em formação e toda a trepidação do destino que essa idade já deflagra. E a constatação é a do despreparo do homem comum em face dos grande acontecimentos históricos, dos acontecimentos coletivos. Claro, como sermos coletivos e ceder com primazia a um acontecimento coletivo se o que menos somos hoje é exatamente isso? O destino de Mesner é um destino de fuga diante do quase inevitável. Como não padecer ao destino coletivo em nome individual?  E como seguir alheio a qualquer destino, inclusive ao mais distante?

Não vou contar o destino do herói do livro. Que esses meus textos sirvam sempre para apontar, para induzir sempre um novo sôco, para que a cabeça mergulhe sempre mais fundo na imaginação de ser. A tarefa aqui é sempre de conduzir. Quase uma mão segurando uma outra mão. E, nesse caso, eu mesmo me conduzo para os outros livros do Roth. Ainda que não queiramos, o destino do homem americano é muito próximo do nosso. Sofremos de muitas mesmas angústias, nós, os ocidentais. Os outros livros do Roth parecem apontar para angústias que ainda não sabemos diagnosticar.

Vamos, contra a morfina do cotidiano? Qual o próximo Roth? O próximo autor? O próximo livro? Quantos desencontros são necessários para, enfim, encontrarmos? E nunca é questão de contabilidade, mas de contratualidade com o que se encontra. A validade nos interstícios dos interesses. É isso que promove o tempo e o espaço dos desencontros, a duração e a largura dos encontros. Claro, um coração largo para suportar e amar sempre ajuda. 

5 comentários:

  1. o soco, essa carícia agressiva que faz a ferida irromper, que gera o hematoma roxo de novidades numa pele previsivelmente imaculada, que abre a ferida que se transformará em cicatriz, e a cicatriz é sempre uma história, um marco, uma grafia na pele, a gritar que ali houve uma ferida. Escandalosa, portanto. É o escândalo que procuramos nessa incessante busca por livros, e sem morfina para apaziguar a dor dilacerante que ele provoca.

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  2. josé, como vc cala bonito! Se disser estas coisas na próxima reunião, juro que esqueceremos o Mia rsrsr Quando quiser ler Pastoral Americana é só falar! Amo este autor e só li um livro! Ele mostra o que se esconde por trás de atitudes aparentemente inocentes. Como são maldosas certas boas intenções. Como os vermes nos corroem e aplaudimos ainda! Como a sociedade( o homem) esconde-se , mascara-se bem. Adorei seu texto. Uma chamada e tanta para a leitura! Bjs.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Olá, José. Parabéns pelo blog. Há milhares, talvez milhões de blogs, para todos os tipos e gostos. Mas fazer um blog com originalidade é raro. O seu tem muito de original. Você constrói conhecimento por meio dos belos textos que você escreve. Um grande abraço. Antonio, do Glube.

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  5. Desculpe os erros gráficos, substituí o anterior e ainda enviei com erro: onde se lê Glube, leia-se Clube.

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