segunda-feira, 25 de outubro de 2010

20- O outro pé do Mia Couto

Certamente, o outro pé do Mia Couto crava sua pegada no encantamento. O um, deve ser como os de todos, dorme, almoça, janta, calça sapatos, sandálias, se esparrama na areia, se fere com um prego, etc e tal. O outro não se deixa jamais abater. Antes, abate. Sem armas, sem guerras, com um artifício que não estamos acostumados a lidar. Sim, o outro pé do Mia Couto crava sua pegada no encantamento. E com ele, faz a gente caminhar para lá, pegada atrás de pegada.

Saí da leitura do livro O outro pé da sereia um pouco aturdido, meio sem saber o que dizer (ainda continuo sem saber). O nosso amigo moçambicano sabe nos arrebatar numa simples frase. Assim, como quem não quer nada, no meio da narrativa, ele solta a digníssima frase que nos faz gargalhar por dentro. São, tantas e tantas, que o meu livro está mais sublinhado do que limpo. A tentação de transcrevê-las aqui é grande. Até porque, preciso ocupar espaço para ocultar a minha falta de dizer. Será que resisto até o fim?

Mas, além das frases, o encantamento parece ser a matéria vital de que os personagens são feitos. E parece ser a matéria também da África que conhecemos no romance. Nunca estive na África, talvez seja o lugar cujo conhecimento mais me falta. Talvez faltem a todos. Talvez também seja o lugar mais propício para a poesia. A verdade que dela evola, que nos sopra nos ouvidos. Uma verdade muito mais bonita do que todas as outras, mais ingênua, mais feliz. Os personagens vivem de forma poética. E explicam o mundo através da poesia. Os ausentes, as fotos, a estrela, Nzuzu, Lázaro Vivo, Constança, Mwadia...quanta explicação poética para as durezas do mundo, as mortes, o abandono. Chegou a hora de colocar um pouquinho das frases para rechear o espaço com belas iguarias poéticas do nosso Mia (grande amigo que me ajuda a suprir a minha total falta de imaginação para abordá-lo...):

"A viagem não começa quando se percorrem distâncias, mas quando se atravessam as nossas fronteiras interiores. A viagem acontece quando acordamos fora do corpo, longe do último lugar onde podemos ter casa." (pág. 65)

"A saudade é a única dor que me faz esquecer as outras dores." (pág. 75)

"Salvar é uma grande palavra. E o amor é uma palavra ainda maior. Grandes palavras escondem grandes enganos." (pág. 93)

"Queremos ter o gosto de usufruir sem a responsabilidade de possuir." (pág.143)

"Só temos como nossos os filhos que são infelizes. Os outros, os que gozam de felicidade acabam se afastando em suave dança com a vida." (pág. 168)

"A saudade é uma tatuagem na alma: só nos livramos dela perdendo um pedaço de nós." (pág. 192)

"A gente ama alguém que desconhecemos, casa com quem conhece e vive com uma pessoa irreconhecível. Às vezes, temos luas-de-mel, outras vezes, luas melosas. A maior parte do tempo, porém, são noites sem luar nenhum." (pág. 314)

Ta bom, né? Já deu para curtir um pouco da genialidade do nosso amigo africano, né? E digo: não é toda genialidade que é bem humorada. Então, andem depressa para correr atrás do pé do Mia... 

Conhecemos a África pela sua terra. Não, no Mia há sempre uma parcela de água a percorrer as difíceis rachaduras da vida. Na água os seres são praticamente eternos moventes, sem ponto de repouso. Podemos dizer que o pensamento poético é o mais aquoso de todos os pensamentos, a fluidez, o indeterminável, as ondas que nele habitam. A África é terra fértil para a poesia porque recheada de água. A água é uma boa arma para a rigidez de certos pensamentos cravados na terra. Água é poesia.

Acima de tudo, o autor da vez nos chama atenção para uma seguinte coisa: a verdade que a poesia inaugura.  Há a filosofia, a ciência, e nos acostumamos às verdades que elas possibiltam. Mas a verdade da poesia ficou distante da nossa realidade. Quem hoje se habilita a explicar algum fato com alguma poesia. Não, não é nem de longe de poetas e poemas que falo, mas de invenções, muito próximas, talvez, àquelas explicações ingênuas das crianças (que de ingênuas não tem absolutamente nada). O filósofo alemão, Walter Benjamin, sabe disso melhor que eu. Um exemplo, não do Benjamin, mas dessas crianças que ele evoca e que por acaso habitam também a minha vida:
- Júlia, você vai dormir de óculos?
- É Zé...é para enxergar melhor o sonho...   

domingo, 3 de outubro de 2010

19- Por que ler este homem?

Quase não parece se tratar de um livro dessa vez, ainda que o seja. Uma coisa são os livros, outras são sempre os homens. Nietzsche extrapola essa questão como parece fazer com tudo. Quem lê Nietzsche não sabe se lê puramente uma filosofia. Ecce Homo é a prova desse difícil limiar. Último livro do filósofo, produzido perto de sua grande crise, a obra é quase uma sangria, expiação, comoção, que deflagra uma última tentativa de ser bem compreendido. Um pavor de fazerem de sua filosofia, e dele mesmo, algo inapropriado.

É um ótimo livro para se iniciar o trato com a sua intragável filosofia. Perigosamente, é claro. A obra alterna momentos de grande lucidez e grande desvarios que já apontam o que viria a seguir em sua vida. Mas ela é um retrato da trajetória de seu pensamento. E aqui vemos como é tênue a linha entre homem e obra, doença e saúde. O livro é um elogio a saúde através da crise.

Ninguém foi mais pessoal do que Nietzsche ao escrever filosofia. A linguagem inflama, queima, faz a gente sair do livro. A escrita própria para encostar na pele da vida, de nós mesmos. Através dela sabemos o quanto pode uma escrita e o quanto podemos. O quanto somos também inflamáveis. Perigo de ser ler Nietzsche: ele pode fazer a gente queimar antes da hora. E o filósofo já sabia que qualquer fanatismo seria prejudicial, inclusive para lê-lo. Um fanatismo que ele não tinha e que não desejaria que ninguém tivesse. É sempre cauteloso ler Nietzsche com um instintor de incêndio ao lado para poder se queimar na medida certa. Um bom exercício para escritores e leitores de plantão.

Seria totalmente trágico uma tentativa de abordar toda a temática do livro aqui. Plural, ele não se deixa pegar em qualquer forma. Frases que brilham como o sol, um clima de verão em pleno inverno. Uma luta constante com aquilo que se é. Não é leviano o subtítulo do livro: como alguém se torna o que é. Tornar-se o próprio destino é tão difícil como se equilibrar na corda bamba. Isso Nietzsche sabe muito bem. A duras penas tornou-se aquilo que foi. Mesmo que para isso tenha sido ou desejado por tanto tempo aquilo que depois lutou contra, a filosofia de Schopenhauer, a música de Wagner, o romantismo, o idealismo.

Nietzsche é contra tudo aquilo que diminui a força da vida. A vida é vontade de potência. Não é o homem que possui a vontade de potência, é a vida.  Daí a sua luta contra a metafísica, o idealismo, o cristianismo. Para ele, os valores criados por essas ideias retiram da vida a sua força e a força do homem.O ressentimento não é senão isso, vontade de que a vida seja outra coisa que não ela mesma, que nela não haja dor, drama, tragédia. Com isso, se entende a aproximação de Nietzsche com Dionísio, a divindade que não cessa de nascer e morrer, sempre renascido, sempre dolorido, mas que nunca sente vontade de não nascer jamais. A tragédia grega inicia com os Ditirambos, cantos em honra a Dionísio, esse ser eternamente renascido. O herói trágico é aquele que aceita o seu destino. Que não desonra a vida por ela conter tudo. O homem desonra a vida quando deseja eliminá-la, purificá-la, em nome de uma outra realidade, de uma outra ideia. A ideia do eterno retorno é um desdobramento que nasce já no Nascimento da tragédia.  

A filosofia de Nietzsche é uma saúde, penosa talvez, no meio de tanta crise. Mas Nietzsche não seria quem é se não aceitasse a sua própria crise. A sabedoria de Nietzsche é aceitar a vida. Fácil, né? Nada. Muito difícil. Não cessamos de criar artifícios para nos livrar da dor, do medo de viver. A filosofia sabe disso. Não é porque sou filósofo que me abstenho de também criar artifício. Sou antes também um criador de artifícios. O difícil é não criarmos artifícios para evitar a dor. Sempre nos acolhe um certo medo mórbido que nasce dentro da gente. Ainda que temida é a dor que nos dá o conhecimento que não temos. Deleuze em sua filosofia fala que o pensamento só se dá na coação, quando forçado a ultrapassar. A natureza da dor é ultrapassar.

Ler Nietzsche é uma saúde. Uma saúde que emerge do trágico. Sabemos ser trágico e tirar dessa nova relação com a vida uma nova perspectiva de saúde? No Ecce homo, o filósofo vira e mexe anuncia-se não como filósofo, mas como fisiologista, interessante, não? A proximidade com o corpo, a proximidade com os instintos, com a natureza. A filosofia de Nietzsche é uma filosofia que diz SIM. Mesmo que para isso tenha que criticar, que dizer muito Não àquilo que desmerece a vida. É dele a maior crítica aos nossos últimos dois mil anos. A filosofia de Nietzsche é um grande renascimento. Quem tem coração bastante para isso? É o que pergunta Zaratustra....