domingo, 3 de outubro de 2010

19- Por que ler este homem?

Quase não parece se tratar de um livro dessa vez, ainda que o seja. Uma coisa são os livros, outras são sempre os homens. Nietzsche extrapola essa questão como parece fazer com tudo. Quem lê Nietzsche não sabe se lê puramente uma filosofia. Ecce Homo é a prova desse difícil limiar. Último livro do filósofo, produzido perto de sua grande crise, a obra é quase uma sangria, expiação, comoção, que deflagra uma última tentativa de ser bem compreendido. Um pavor de fazerem de sua filosofia, e dele mesmo, algo inapropriado.

É um ótimo livro para se iniciar o trato com a sua intragável filosofia. Perigosamente, é claro. A obra alterna momentos de grande lucidez e grande desvarios que já apontam o que viria a seguir em sua vida. Mas ela é um retrato da trajetória de seu pensamento. E aqui vemos como é tênue a linha entre homem e obra, doença e saúde. O livro é um elogio a saúde através da crise.

Ninguém foi mais pessoal do que Nietzsche ao escrever filosofia. A linguagem inflama, queima, faz a gente sair do livro. A escrita própria para encostar na pele da vida, de nós mesmos. Através dela sabemos o quanto pode uma escrita e o quanto podemos. O quanto somos também inflamáveis. Perigo de ser ler Nietzsche: ele pode fazer a gente queimar antes da hora. E o filósofo já sabia que qualquer fanatismo seria prejudicial, inclusive para lê-lo. Um fanatismo que ele não tinha e que não desejaria que ninguém tivesse. É sempre cauteloso ler Nietzsche com um instintor de incêndio ao lado para poder se queimar na medida certa. Um bom exercício para escritores e leitores de plantão.

Seria totalmente trágico uma tentativa de abordar toda a temática do livro aqui. Plural, ele não se deixa pegar em qualquer forma. Frases que brilham como o sol, um clima de verão em pleno inverno. Uma luta constante com aquilo que se é. Não é leviano o subtítulo do livro: como alguém se torna o que é. Tornar-se o próprio destino é tão difícil como se equilibrar na corda bamba. Isso Nietzsche sabe muito bem. A duras penas tornou-se aquilo que foi. Mesmo que para isso tenha sido ou desejado por tanto tempo aquilo que depois lutou contra, a filosofia de Schopenhauer, a música de Wagner, o romantismo, o idealismo.

Nietzsche é contra tudo aquilo que diminui a força da vida. A vida é vontade de potência. Não é o homem que possui a vontade de potência, é a vida.  Daí a sua luta contra a metafísica, o idealismo, o cristianismo. Para ele, os valores criados por essas ideias retiram da vida a sua força e a força do homem.O ressentimento não é senão isso, vontade de que a vida seja outra coisa que não ela mesma, que nela não haja dor, drama, tragédia. Com isso, se entende a aproximação de Nietzsche com Dionísio, a divindade que não cessa de nascer e morrer, sempre renascido, sempre dolorido, mas que nunca sente vontade de não nascer jamais. A tragédia grega inicia com os Ditirambos, cantos em honra a Dionísio, esse ser eternamente renascido. O herói trágico é aquele que aceita o seu destino. Que não desonra a vida por ela conter tudo. O homem desonra a vida quando deseja eliminá-la, purificá-la, em nome de uma outra realidade, de uma outra ideia. A ideia do eterno retorno é um desdobramento que nasce já no Nascimento da tragédia.  

A filosofia de Nietzsche é uma saúde, penosa talvez, no meio de tanta crise. Mas Nietzsche não seria quem é se não aceitasse a sua própria crise. A sabedoria de Nietzsche é aceitar a vida. Fácil, né? Nada. Muito difícil. Não cessamos de criar artifícios para nos livrar da dor, do medo de viver. A filosofia sabe disso. Não é porque sou filósofo que me abstenho de também criar artifício. Sou antes também um criador de artifícios. O difícil é não criarmos artifícios para evitar a dor. Sempre nos acolhe um certo medo mórbido que nasce dentro da gente. Ainda que temida é a dor que nos dá o conhecimento que não temos. Deleuze em sua filosofia fala que o pensamento só se dá na coação, quando forçado a ultrapassar. A natureza da dor é ultrapassar.

Ler Nietzsche é uma saúde. Uma saúde que emerge do trágico. Sabemos ser trágico e tirar dessa nova relação com a vida uma nova perspectiva de saúde? No Ecce homo, o filósofo vira e mexe anuncia-se não como filósofo, mas como fisiologista, interessante, não? A proximidade com o corpo, a proximidade com os instintos, com a natureza. A filosofia de Nietzsche é uma filosofia que diz SIM. Mesmo que para isso tenha que criticar, que dizer muito Não àquilo que desmerece a vida. É dele a maior crítica aos nossos últimos dois mil anos. A filosofia de Nietzsche é um grande renascimento. Quem tem coração bastante para isso? É o que pergunta Zaratustra....     

4 comentários:

  1. ai, como estou relapsa. preciso arrumar tempo para te ler com calma.

    uffff.

    k.

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  2. já faz tempo que tenho me corroído por dentro, nietzsche iria apenas colocar um pouco mais de lenha na fogueira.

    a dor? que venha, eu curto a dor, em seu mais literal significado. sem remédios de tarja preta, sem amortecedores da alma, sem tapar sol com a peneira. talvez algum artifício que a potencialize, talvez. muito provavelmente a sobriedade para encarar de frente o rojão que é a vida. tudo é questão do momento, do estado de espírito, não é mesmo?

    a pergunta é: nietzsche é inapropriado?

    bjs, k.

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  3. "Aceitar a vida" e seguirmos como observadores de nós e do mundo. Quero sentir esse "calor" de Nitzsche, depois de ouvir você falar nele. Beijos da amiga ..... Angela Ellias.

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  4. Olá, J.M, é o Antonio do Clube de Leitura. Tenho três livros do Nietzsche na fila. Um dia comecei a ler "Assim falou Zaratustra", mas fiquei pelo caminho. Descobri que o homem era louco mesmo... Mas como gosto muito da filosofia do sujeito, começo já a me preparar para continuar a leitura... Então te faço uma pergunta J.M, para quem já estudou um pouco do pensamento de Nietzsche, qual seria o livro mais adequado para começar a entrar no universo nietzschiano?

    Um abraço, Antonio

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