segunda-feira, 28 de junho de 2010

9- Congruências

Qual é o grande desafio quando se decide falar sobre um livro? E o pior, qual é o desafio quando se decide escrever algo de novo sobre um livro que está na moda, que muita gente leu e que, cada um a seu jeito, soube tirar do livro o essencial? Bem, o livro de que trato é A elegância do ouriço da filósofa francesa Muriel Barbery.

Antes de escrever esse texto percorro os inúmero blogs que tratam do livro. E eles dizem mais ou menos a mesma coisa: um pouco à moda de cada um o tema do livro. Mas encontrei uma variação interessante no http://peregrinacultural.wordpress.com/2008/07/08/a-elegancia-do-ourico-muriel-barbery/, a variação que aborda o jogo de imagens que faz Barbery em relação com os quadros do Magritte. E a suposição de que o nome da personagem principal, Renée, seja uma homenagem ao pintor. E desta homenagem uma pista interessante para se percorrer o romance.

E a dica vale. É sem dúvida no jogo do ocultamento que o romance encontra um dos seus principais motes: eu sou; mas a minha aparência não diz realmente o que eu sou. E você que me olha com a sua ideia de mim, que não se mantém apenas no presente mas em todo o estereótipo da visão, é incapaz de dizer além do que vê, é incapaz de supor além do visível um mundo. Uma metafísica da existência se vislumbra para além da normalidade do ser, para além do cotidiano, para além de meras concierges e crianças. Assim, Paloma e Renée juntas. Juntas como sempre estiveram. Mas além desse jogo de espelhos partidos onde o que se vê é sempre outro, onde a crítica do olhar é sempre severa (e aqui vale fazer uma singela homenagem ao Saramago que na epígrafe do Ensaio sobre a cegueira nos diz: Se podes olhar, vê. Se podes ver, repare. Nessa importância de ter olhos quando todos os demais cegaram...), onde o que é oculto parece dizer mais que o explícito, onde a profundidade ganha da superfície é que a escritora francesa aponta para as congruências da existência...

Que congruência? Esse é um dos títulos de um dos capítulos do romance. E é dele que tento partir para abordar o romance. Mas antes de tentar escrutinar as congruências do romance quero apontar pequenos souvenirs literários que em nada mudarão a leitura ou releitura do romance. Bijuterias, portanto, para o apetite da alma: 16 de junho é o dia que Paloma decide se matar. É justamente nesse dia que é desenrolado todo o romance Ulisses de James Joyce. Bijuteria de camelô: James Joyce escolheu esse dia para tecer o romance porque foi num 16 de junho longínquo que ele conheceu a sua mulher Nora Joyce. Será que ela se deu conta disso?

Bem, isso não tem a absoluta relevância.

Outra congruência é com Albert Camus. Também um filósofo que escreve romances. E ele mesmo diz que para filosofar era preciso escrever romances. E ela o faz muito bem. Paloma parece, desde o princípio possuir essa afinidade (eletiva?) com a filosofia de Camus. A vida não tem sentido, ela é absurda por excelência e, simplesmente, não vale a pena viver. Camus, no Mito de Sísifo, começa com essa questão. Não interessa mais nada, se a vida tem cinco ou dez dimensões, se a alma tem cinco ou dez vida, nada disso importa, o que vale a pena saber é se essa vida, a única vida que temos a absoluta certeza de existir, vale a pena ou não.

É para colocar a vida no limiar do abismo que Paloma escreve os seus pensamentos profundos e movimentos do mundo. É desse ato de olhar para escrever, e para escrever é preciso olhar além do olhar às coisas, que Paloma consegue extrair da vida as congruências que a fará não mais desistir da vida. E o que percebemos da natureza da congruência é que para acontecer ela exige essa harmonia natural que a faz perpétua e frívola, no tempo exato de cada coisa. Significativa é a passagem em que Paloma encontra o THE movimento. Nele, ela encontra a sua lei que a protagonista perseguiu durante todo o romance, a perfeição de alguma coisa que valesse a pena viver:

"Eu, ao olhar aquela haste e aquele botão, intuí num milésimo de segundo a essência da Beleza. Sim, eu, uma pirralha de doze anos e meio, tive essa chance inacreditável porque, hoje de manhã, todas as condições estavam reunidas: mente vazia, casa calma, lindas rosas, queda de um botão. E foi por isso que pensei em Rosard, sem muito compreender no início: porque é uma questão de tempo e de rosas. Porque o que é bonito é o que captamos enquanto passa. É a configuração efêmera das coisas no momento em que vemos ao mesmo tempo a beleza e a morte.

Ai, ai, ai, pensei, será que isso quer dizer que é assim que temos de viver a vida? Sempre em equilíbrio entre a beleza e a morte, o movimento e seu desaparecimento?

Estar vivo talvez seja isto: espreitar os instantes que morrem" (Pág.: 293)

E quão difícil é, e cada vez mais, habitarmos este instante em que todas as condições estão favoráveis para realmente captarmos uma epifania nas pequenas coisas...talvez numa viagem com cabelo ao vento conseguimos olhar para uma paisagem e sentir o movimento e seu desaparecimento com essa eternidade e frivolidade natural dá própria essência do tempo....talvez...

Se Paloma procura a congruência do mundo, a harmonia das coisas belas (Kant, na sua Crítica da faculdade de juízo diz que o belo é a harmonia, é o acordo tácito entre as nossas faculdades, a comunhão dos sentidos que o objeto sentido faz... - estou simplificando demais o Kant, coitado, deve estar socando o túmulo de tanta raiva de mim... mas é porque acho que esse texto vai ficar longo demais e você já deve estar se cansando dele...), Renée vive, mesmo sem saber, essa harmonia do destino, a congruência da beleza enredada em si.

Renée se oculta durante todo o romance. E o seu destino é trágico. Ela só se abrirá para a vida quando for tarde demais. Tarde demais não. Na congruência de sua existência. Ela faz valer a máxima de Paloma: "o que importa não é morrer, é o que está se fazendo no momento de morrer". Talvez toda a vida de Renée tenha se preparado, no ocultamento, para ser aquilo que foi. E, talvez, todo o nosso destino seja isso também: uma preparação para uma morte inescrutável, inescrutável não no acontecimento em si, mas na sua forma e no seu tempo. O nosso destino um pouco louco: se preparar para morrer da melhor maneira possível - mesmo no trágico, mesmo no absurdo - mas em harmonia com aquilo que você quer. A harmonia da busca mais perfeita que a harmonia do encontro. E a beleza do romance, e o nosso comprazimento com o destino de Renée é muito maior do que com o destino de Paloma. Paloma sabe disso: o destino de Renée é a percepção do seu movimento do mundo mais completo, do seu pensamento profundo ainda não escrito. O sempre no nunca que nos aponta a última página do romance.


Toda literatura é uma doença, todo livro é um livro doente, na voz de Antônio Lobo Antunes. No contraponto intrínseco, toda literatura é uma saúde, uma renascimento, uma tentativa, uma linha de fuga para sair do lugar em que se está. Movimento do ser pela escrita, pela invenção de personagens e dos afectos.

Não sei se A elegância do ouriço possui o estatuto de uma obra de arte. Mas é um livro elegante, repleto de frases espirituosas sobre a vida contemporânea, repleto de referências literárias e filosóficas, que recomendo ler com um lápis para sublinhar as passagens mais interessantes. Não sei se terá a perenidade dos grandes romances, creio que não, mas isso não tem a mínima importância para o agora em que se vive. O importante é o que fazemos enquanto vivemos na espera da morte inescrutável. Será que o que buscamos agora é suficiente para glorificar essa morte, não para os outros, mas para nós mesmos? Se morrêssemos lendo A elegância do Ouriço morreríamos felizes como Renée. Pela promessa de um destino anunciado, pela veia aberta de um destino permeado de arte e literatura que o próprio romance nos dá. Barbery nos dá a abertura para um mundo que para alguns pode ser bem novo. Para os que já o conhecem, reacende a chama para continuarmos nesse destino incinerário que é a vida inflamada de arte, de literatura, de filosofia, de vida, pois.

domingo, 13 de junho de 2010

8- Intensidade de si

Escrevo para não esquecer. Primeiramente, para lembrar a mim mesmo, acima de tudo, das verdades que a gente descobre ao longo da vida. Para evitar a fluidez do pensamento. Das coisas que nos atacam e fogem como se levadas por uma correnteza de um rio, a correnteza do tempo. Para evitar aquele estado de perplexidade que nos falou Fernando Pessoa no seu poema Tabacaria: "Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu." Precisamos cravar a palavra no papel, incialmente. Depois, cravá-la na alma - uma tatuagem no espírito? -, na existência, utilizá-la como se utiliza um martelo ou uma faca. Cortar a existência com a palavra. Martelar a existência com a verdade.

E quando digo verdade aqui a coloco no sentido dos gregos, do seu sentido de verdade. Não essa verdade que conhecemos, a da adequação do sujeito que enuncia com o objeto enunciado. Não. Martelar a existência com a verdade é fazer um tributo à memória e ao não esquecimento. A verdade dos gregos como Alethéia: o não esquecido. Aquilo que por ser verdadeiro deve permanecer na existência. Assim é que, primeiramente, com os poetas (inspirados pelas Musas, filhas da memória) e, depois, com os filósofos, a Alethéia era pronunciada. Pois então: porque gastarmos tempos falando do ruim, criticando o ruim, quando o que na verdade vale a pena ser celebrado com a potência de nossa voz é a excelência, o melhor, o mais belo? Aquilo que é ruim o próprio tempo faz questão de exilar. Aquilo que não é verdadeiro o próprio tempo joga no esquecimento. E quanto mais tratamos de falar do ruim mais ele ganha força pela inversão do nosso discurso. A negação, o esquecimento, é a nossa mais bela forma de criticar. Porém, não estou aqui para negar e sim para afirmar.

E o que não quero esquecer jamais? O que esse texto quer celebrar? O que quero dizer, primeiramente para mim, e que me falta, e que vi, e que quero tê-lo?

Além de amar a arte e a filosofia, amo os esportes. É dele que tiro a questão de hoje, afinando, então, o meu discurso com o de Deleuze, no qual é preciso ir para os espaços não filosóficos para extrair materiais filosóficos. Esportes então. E mais propriamente o tênis. E, mais especificamente, um tenista: Rafael Nadal.

Quem convive comigo sabe que sempre torci mais para o Roger Federer do que para o Rafael Nadal. E isso é muito fácil de explicar: a genialidade a gente aprecia logo de cara. O Federer é um gênio do tênis. O homem que faz aquilo que sabe simplesmente por dom. Tudo lhe é natural. O movimento flui. A técnica lhe é imanente. É fácil apreciar o tênis do Federer como é fácil apreciar o belo, a harmonia. Mas me rendi ao Nadal. Ele não é um gênio. A técnica não lhe é natural...a técnica lhe veio depois de muito trabalho...e é dele que quero extrair alguma coisa...

Ver uma partida do Nadal é ver uma batalha de fúria. A fúria do homem em nome de seu limite. Cada corrida é um aposta contra o fracasso. E o tenista corre atrás da bolinha, como um louco, como um touro (O Touro Miúra como o chamam), numa Odisséia sublime em busca do máximo de si. E é aqui que ele ganha o meu grande elogio: ele nos mostra o que é tentar sempre estar na permanente excelência de si. E, não é fácil, sei e afirmo por experiência e risco: não é fácil estar no auge de si o tempo todo. Mas ele é a excelência da intensidade de si. Não o vemos baixar a guarda mesmo quando perde o ponto. Não o vemos desistir de uma bolinha sequer quando arremeçada contra a sua quadra. Vemos o seu poder de concentração em cada momento do jogo. Um poder de concentração lúcido e quase inquebrantável. É difícil, muito difícil, manter a intensidade de si. E é, geralmente nesse estado de concentração e luta, não contra o adversário, mas contra si mesmo, que ele, no ponto exato em que o outro perde para si mesmo e que se perde, ganha de todo mundo.

Pensemos numa vida. Na nossa. Quando é que estamos no nosso limite permanentemente? Ok. Menos, bem menos...em um dia: durante quanto tempo do dia conseguimos manter a nossa excelência, dar à vida o melhor de nós, nos doar com toda a intensidade a um ato? Sabemos que muito pouco, muita coisa nos tira dessa intensidade, preguiça, distração, tédio, sei lá o que mais. E quando simplesmente ainda temos força. Quando o nosso corpo está apto a ser mais, a ser tudo que quisermos...nós mesmos matamos essa potência, nós mesmos damos à nossa vida uma morte quase imperceptível da potência, uma forma preguiçosa de nos habituarmos a morrer...

Talvez a diferença entre os grandes e os medíocres seja essa tentativa em nome da intensidade com que nos doamos àquilo que tomamos para nós como nossa ação. Essa capacidade de ultrapassar. Tirar, talvez, desse texto um objetivo modesto: chegar ao fim do dia, de todo dia, e dizer: cheguei no meu limite. Fui até onde deu naquilo que me dispus. Até onde o músculo se contrái e endurece pedindo descanso. É o descanso que deve falar por si e não nós por ele. Sabemos que não é fácil. Mas busquemos essa intensidade de si. Essa força, essa capacidade, a potência de existir.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

7- Um texto para quem precisar

Esse texto nasce com semblante de auto-ajuda ainda que não queira sê-lo. Mas nasce com o intuito de ajudar alguém. Quem? Eu mesmo? Uma amiga minha? Ou alguém que simplesmente o lê e que precise. Ainda que não diga nada de novo. Ainda que diga o que todo mundo sabe. Ele nasce.

E uma revelação me interrompe a escrita: mais importante do que ler é ler o que se precisa na hora certa. De nada adianta ler o melhor romance do ano, o melhor livro da história, ler Clarice Lispector ou Kafka, Marcel Proust ou James Joyce, se a sua alma não pede exatamente aquele material. O sucesso dos livros de auto-ajuda se inserem nesse contexto, ainda que não digam nada de novo, que digam o que todo mundo sabe, eles atingem a pessoa no seu nervo, no exato ponto em que necessitava, ainda que raso, rasteiro, ainda que nada de novo, ainda que nenhuma verdade, nenhuma epifania.

Li grandes livros que me diziam grandes verdades. Porém, em alguns casos, elas não me atingiram como deveriam. E é quando penso que sou um mal leitor. De vez em quando. Quando a pressa me domina, quando a fúria de terminar ultrapassa a fúria de saber e de fruir. Mas, constantemente, não. E mais quando sei que aquilo que estou lendo é aquilo que preciso. O primeiro passo de um grande leitor é saber qual a matéria espiritual que necessita e não lê por modismo ou para se livrar do livro. Mas como saber senão no ato da leitura? Toda leitura é uma aposta. E para além dos livros: toda escolha é uma aposta que só dá a garantia da vitória ou da derrota depois de devorada. Acontece de precisarmos de outra coisa depois que já estamos no meio do caminho de uma leitura onde o diagnóstico da doença foi certeiro? Acontece. Geralmente mudamos de livros. Mas o grande ganho parece ser quando a leitura, depois da excelência da cura, continua a exercer sua influência tenuamente, vagarosamente, no imperceptível. Dando-nos a sensação de que a dor já foi sanada. Mesmo assim, devemos continuar a ler: como um antibiótico que devemos tomar os sete dias depois de já termos curado a nossa dor de garganta. Os meus maiores ganhos aconteceram quando, já depois de terminada a leitura, do livro empoeirado na prateleira, alguma imagem ou verdade me assalta. Ai vi que a leitura foi correta. Quando ela inverteu o jogo e transbordou o tempo.

Não queria dizer nada disso nesse texto. Queria ajudar alguém de outra forma. Dizer o óbvio: que somos energia, que temos de aproveitar o tempo dos nossos átomos se condensaram em nós para existirmos ao máximo. Que depois eles voltam a se embaralhar, a se perder em outros átomos, a fluir a sua energia de outra forma, a voltar para o todo de onde partiu. Mas agora é o nosso tempo: matéria e energia em nós. Porque não celebrarmos isso que somos agora, nesse átimo de tempo de individualidade, para devolvermos ao mundo um pouco dele mesmo, transformado? E aqui me surge a imagem da água-viva (E sim, uma das formas de se entender o romance da Clarice): ela é 90% (ou alguma coisa por ai) feita da mesma matéria do oceano...mas por um segundo ela se desgarra, se condensa...e a sua compleição se difere de tudo o mais...e é nesse espaço que a vemos se movimentar...e é nesse tempo que ela queima...até voltar...até ser novamente água...pura água...Saber sim que somos individuais. Saber sim que somos um sopro de vida. E saber aproveitar isso. E saber também se espalhar e nadar nessa imensidão do mundo. Saber que somos também uma parte do todo e o todo uma parte de nós: água-viva. E vale a dica para, quem precise, ler o romance homônimo da Clarice Lispector.

Bem, ainda que nada de novo. Ainda que nenhuma nova verdade. Um texto para quem precisar.