segunda-feira, 29 de novembro de 2010

23- Os perseguidores

O biógrafo persegue Jonhy Carter: Cortázar persegue Charlie Parker: eu persigo Julio: você me persegue: e nós, todos, o que perseguimos? Uma linha tênue atravessa nossas biografias ainda que não saibamos para quê, para onde, em que direção vai, o momento em que ela deságua num abismo ou numa ponte. As nossas armas secretas continuam secretas embora haja sempre uma ligeira suspeita de que é sempre próxima a descoberta, e sempre próxima também a ilusão da  finalidade disso tudo.

Com que objetivo caminha uma melodia? Da mesma forma caminha o homem. E uma nota pode arrastar a memória para uma fotografia que perigosamente leva a um pássaro que automaticamente nos encaminha para o outro lado do mundo, outra memória, outro destino que pode até ser o mesmo. Uma melodia de jazz, um improviso, uma pausa de mil compassos: não creio que estou falando de algo bem distante do nosso mais íntimo cotidiano. 

O universo da literatura de Julio Cortázar nos leva exatamente para essas dobras do ordinário onde tudo pode ceder, descambar, iluminar. O homem que caminha na corda bamba e que consegue atravessar o picadeiro é quase sempre o destino mais improvável. A riqueza dessa travessia é se deixar balançar e fazer acontecer os mais improváveis movimentos. Sim, certo, a queda, a probalidade da queda, o seu ar trágico, o seu ar delicioso também. Nós, os perseguidores, gostamos de andar na corda bamba com outros propósitos. Quanto maior o movimento mais bonito o andar, quanto mais lúdico, melhor a queda.

Um pensamento é a maior distância entre dois atos. Ser um pouco com Cortázar ou ser como seus personagens nos dá o estatuto de seres afectivos. O que vem a ser isso que os personagens de Bergman  também conhecem bem, ainda que com outros desdobramentos? Há a ação, há a reação: e esse intervalo entre a ação e a reação é aquilo que propriamente chamamos de espaços de afecção. Afecção é o tempo intervalar entre um momento e outro onde as coisas podem girar como um furacão ou podem só esboçar um espasmo imperceptível de movimento. Uma ameba raramente (trata-se, claro, de um texto um pouco fantástico também) possui tempo para afecção enquanto age e reage na sua existência de capturar os seus nutrientes necessários. E Claro, os personagens de Cortázar escolhem (escolhem?) sempre a opção do furacão. Como Pierre do conto As armas secretas do livro homônimo. Ou mesmo como Jonhy Carter do conto O perseguidor, ou Oliveira de Rayuela. Entre beijar ou não beijar Michèle um mundo fantástico se elabora que continuar a ação como ela começou é quase impossível. Frase sintomática de Pierre: "Já aconteceu de você pensar de repente em coisas completamente alheias às que estava pensando? Você devia me dar alguma coisa, uma espécie de objetivador." Sim, trata-se de um ser afectivo.  E sim, tenho uma leve suspeita que sou também um deles.  E os personagens de Bergman, a câmera de Bergman, não há outra possibilidade senão a de perseguir o rosto, esse território onde a afeção se determina, fronteira impenetrável entre a próxima ação indeterminada que o rosto quase discrimina. E quem, quem, pode dizer que não foi ao menos afectivo uma vez ao dia quando olhou tal rosto de mulher ou foi atingido pela hesitante ação de uma buzina em plena luz de meio dia? Quem entre um êxito e outro não hesita, não treme a alma?     

Porém, a ação é irremediável. Não dá para morarmos nesse intervalo. Temos que escolher uma delas como encontro ou como fuga. Uma ação que determina a nossa luta, a nossa lupa, a busca.  O que o melhor saxofonista de jazz procura em suas notas, em seu virtuosismo? Jonhy Carter, Charlie Parker, eu (sim, toco sax), o que vibra em nós quando atravessamos uma harmonia com o mais alucinado sopro? O que há, afinal, no fim da melodia? Provavelmente nada. Talvez aqui esteja o cerne disso tudo. Não é necessariamente pelo meio que chegamos a determinado fim. Ainda que seja por essa instrumentalização da vida que somos obrigados a caminhar.

Da mesma forma: para que ler todos os bons livros do mundo, escrever todas as histórias possíveis e fantásticas, salvar todos os homems, proteger a nação, proteger o homem, filosofar, jogar, amar? O que buscamos no fundo disso tudo, desses gestos todos, nós, os perseguidores? Plenitude, sabedoria, riqueza da alma, paz, dinheiro, fama, cronópios, um olhar amoroso para sempre nos dizer o quê, o quê? Qual é essa imagem que buscamos e que nos redimirá diante de todo o nosso destino? Não se enganem, todo mundo busca uma imagem, um rosto, uma memória, um passado, um acontecimento que transfigure o seu destino. Quantos artificios podemos inventar para iludir aquilo que realmente buscamos, quantas formas podemos constituir a nossa alma para nos aproximar daquilo que realmente queremos. Quantas máscaras, quantas cores, nós, os camaleões da existência? E pode ser que mais próximos ficamos da coisa procurada quanto mais usamos máscaras, quanto mais despistamos os outros de nossa busca íntima, porque só nós mesmos é que podemos agarrar essa matéria informe de nossa busca. O destino é sempre da ordem do instransferível. O gozo de ser a sua própria melodia e a vibração que isso provoca no mundo. Daí todo gozo frustrado do plágio de buscar o que o outro foi, alcançou, existiu. A linha que nos une é tênue, mas o destino da linha é sempre o da tangente, obrigatoriamente.

Jonhy Carter passou longe, Cortázar pode ser que sim, e eu não tenho ainda a menor ideia do que persigo com tanta fúria no corpo através da arte e da filosofia e em todo o resto, em todo gesto. Mas amo perseguir essa coisa improvável que nunca encontrarei. E aqui não há sinais de pessimismo, porque não encontrar não é sinal de pessimismo.  E se encontrar o que procura, acalma-se, isso é incomunicável. 

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