Este texto não sairia não fosse o fato de eu ter visto uma entrevista com o Paulinho Moska falando sobre Zelig, filme do Woody Allen, não fosse o fato de eu ter assistido o próprio filme e se, durante todo esse ano, eu não tivesse sido tocado pela obra do Fernando Pessoa e pelas pessoas que gostam do poeta português. Tudo está no Pessoa. Tudo. E algo permeia todos esses personagens de que falei. Além, claro, daquilo que me inquieta e atravessa.
Zelig é um ótimo personagem, exagerado, na sua mania de se apropriar das qualidades das pessoas que estão próximas. Perto de um chinês, ele se torna chinês. Perto de um zé, ele se torna um zé (ainda que eu não saiba o que venha a ser isso exatamente...). Perto de você, ele se tornará você, tal e qual. O que me chama atenção no Zelig é a sua capacidade de ser outro. Mesmo que para isso ele acabe não sendo ninguém, nem ele mesmo. O Zelig é o exagero da despersonificação e da outridade. Mas, quem é que não sente um pouco de inveja de ser um Zelig, em possuir um pouco dessa sua capacidade de ser outro e, para falar com o Pessoa, ser plural como o universo?
A questão da identidade e da impossibilidade que ela condiciona. As formas possíveis de ser que, em nome daquilo que a gente chama de "eu", são trancafiadas em nome do próprio nome. Suspeito muito de que essa história de "eu" é uma invenção que veio a ser no homem como forma de habitar a existência. O princípio de identidade de Parmênides acabou vencendo o devir contínuo de Heráclito. Quem disse que a filosofia é sempre inatual, mesmo a antiga? Um conceito torna-se real na mendida em que o trabalhamos e o colocamos na vida. Então, tornamo-nos escravos da nossa memória de sermos nós mesmos? E esquecemos as possibilidade de ser que em nós lateja? Quantos "eus" existem e que não tomam vida na existência? O quanto você castra de sua possibilidade em nome de sua história, identidade e nome? A questão construída não é a do ganho em ser um só, mas da perda em não poder ser vários.
Fernando Pessoa. Tudo está no Pessoa e todos estão no Pessoa. O quanto ele nos mostrou da potência de ser! O que é o seu projeto literário calcado nos heterônimos se não essa mensagem: amigo, você que é real, que acredita no real, pode superá-lo. Você, inclusive, pode superar a si mesmo deixando-se ser, ser como os outros, ser como as coisas, o universo inteiro, afinal, sem o prejuízo de se perder ao ser tantos. Olhe, capture, aprenda com uma planta, uma pedra, um pássaro, o outro que você ama ou odeia, mas aprenda que o outro é sempre possível. O outro é sempre maior que o eu, e por isso possível, e talvez mais real que isso que você chama de real e de "eu". Não perca tempo nas amarguras de ser, nos ressentimentos que envolvem a vida, de ter nascido assim e não outro, recrie-se e extrapole o ressentimento, a mágoa de não ser ou não ter sido, o que talvez importa é sempre o passo adiante, a porta adiante a se abrir, a abertura que nós mesmos criamos como invenção de um novo mundo. Eu posso ser eu, o outro, e todo o meio, a ponte, aquilo que trafega e flutua entre o presente o passado e o futuro. Eu, não mais uma invenção que me fecha, mas uma abertura para outros "eus". Devir, tornar-se, a mudança, é sempre mais real que a identidade e o imobilismo. Não há nunca o mesmo "eu", ainda que se queira, durante os dias e as horas.
Romper com o nascimento da carne, como gosta de escrever Deleuze. Criamos nós mesmos novos nascimentos e novos rompimentos, até muito mais do que achamos, estamos sempre a colocar novas datas, novos motivos e desejos, nisso que chamamos "identidade". A identidade pode ser um péssimo hábito de se lidar apenas e constantemente consigo mesmo.
Ano novo chegando, abrindo novas portas e formas de ser. Formas que ainda não conheço e que amarei encontrá-las. No fundo, quem não gostaria de ser do tamanho do mundo para nutrir toda a vida que há na existência. Um corpo, um tempo, um eu: é sempre muito pouco para o tamanho da vida. Então, antes que a terra nos coma, vamos fazer como o Cazuza: canibais de nós mesmos. E mais, canibais da vida, do outro.
Você precisa desesperadamente ler " A identidade cultural na pós-modernidade", do Stuart Hall. Além dO lobo da estepe, claro!
ResponderExcluiro problema principal em ser o outro é quando o outro continua sendo vc. não acredito que, para sermos algo diferente de nós mesmos, temos necessariamente que ser algum outro, já construído, com identidade modelada. podemos ser alguém diferente de nós mesmos, mas ainda assim sendo nós, mas que ainda não se manifestou por completo ou nunca imaginamos que partiria de dentro da gente.
ResponderExcluiracredito que é neste ponto onde o bicho pega pra maioria das pessoas. elas não se assumem sendo mais de uma única pessoa. ou, sendo alguém diferente delas mesmas, precisam ser especificamente alguém já existente. crise de (falta de) identidade?
qdo aceitarmos o fato de que há muitas facetas de nós escondidos em todos os cantos de nosso ser, seremos muito mais relaxados quando as diferenças em relaçao ao outro e, principalmente, em relacao a nós mesmos.
da fraqueza, uma potencia. devorando-nos para nos entendermos e sermos maiores, não pequenos a cada naco mastigado.
bjs, k.
Amigo, maravilhoso texto que nos leva a refletir sobre nossa identidade e possibilidades. E Karina , de certa forma, colocou o que penso: O outro também não tem a identidade acabada, fechada ou a que pensa que tem. (Estarei dizendo bobagens? Ai que vergonha pensar que o outro vai me ler!mas vamos lá, enfrento! !rsrs) . Sendo assim, tudo nos espera, a nós que não aceitamos o ser completamente ja´ feito , inflexível.
ResponderExcluirAdorei! Vou propagar seu texto.
Elô