quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

25- Troféu Fahrenheit 451, retrospectiva, previsões e mar

Absolutamente mais tentador do que ler uma página de um livro é dar um bom mergulho no mar. Ah, para quem não percebeu, estou já no clima de férias, verão, praia, futvolei, frescobol, todas essas coisas que me compõem. Quem disse que dentro de um ser não pode residir vários? Quanto mais reconheço a pluralidade que habita em mim mais me aproximo da vida e de sua verdade. Estou tão em clima de férias que quase não quero falar sobre livros. Mas como não falar desses bichinhos apaixonantes que me rodeiam diariamente? 

Claro, é a hora da retrospectiva e dos vislumbres futurescos. Começar pelo passado é quase uma ordem. Mas que filósofo gosta de seguir a ordem natural das coisas? Então, ao futuro.

Regra número 1 para a realização dos meus desejos literários: ler todas aquelas obras clássicas que até hoje tive medo de enfrentar. Ta certo, para algumas eu, confesso, ainda não estava preparado. Mas hoje me sinto pronto para devorar tudo. Ano que vêm as leituras serão grandes, não só na qualidade, mas na quantidade também. Vou enfrentar Ulisses, me perder no labiríntico Rayuela, ler e realmente entender o Borges que já li, subir novamente na Montanha mágica de Thomas Mann, e sim, o esperado 2666 do Bolaño; e tantos outros. Todas as leituras iniciadas em algum tempo da minha vida e que desisti no meio do caminho. 2011 é um ano de retomada. Chegou a hora de enfrentar os grandes, os clássicos, engolir o que a vida tem de melhor. Por que se poupar diante do prazer com o medo de não sobrar nada depois? Foi isso que fiz de mim até agora. Mas a vida, a vida sempre sobra. Schopenhauer tinha razão. A vida é, antes de tudo, vontade. E ela jamais acaba. Nós acabamos antes. Por isso, como já disse: devore-se. Um pouco como a Esfinge, só que diante da vida. Decifre e devore a vida. Se não, ela te devora.

O ano foi de ótimas descobertas. E para celebrar essas descobertas invento o troféu Fahrenheit 451. Troféu homônimo ao filme do Truffaut (por favor François, não me cobre direitos autorais!). Bem, para quem não viu o filme eu explico. No final, cada homem que adorava ler e que conseguiu escapar da perseguição policial (eles queimavam os livros!!) escolhia um livro para decorar inteirinho. Assim, os policias podiam queimar os livros, pois estes residiam agora no homem. Como eu queria ter essa capacidade de decorar os livros e tê-los inteiros e eternos na minha alma! Entenderam? Pois é isso: qual o livro do ano que valeria apena interiorizar e colocar eternamente dentro de mim?

Como essa resposta é dificil. Como aqui não dá para delinear a dimensão do tempo que me angustiei até me decidir qual, já adianto que saí da cadeira, fui na cozinha, voltei, escutei umas quinze músicas, e só agora pareço me decidir. Ainda com ressalvas. Espera. Acho que vou mudar. Mudei. Mudei de novo. Agora escolho outro que ainda não tinha pensado. Acho que agora sim, então vai. É esse, Zé? Tem certeza? Não. Mas como tenho que escolher apenas um, aqui vai: Ecce Homo. Em segundo lugar ficou O outro pé da sereia. Completando o pódium: Clarice,.

Porém, vocês sabem que essa história de superlativos é a maior bobagem, né? O Nietzsche já havia nos alertados quanto ao perigo dos superlativos. E quando o superlativos tangem a arte e as pessoas, ele é desnecessário. Mas, sim, decoraria o Ecce homo com muito gosto.

Pronto, já falei dos livros. Agora vou falar das férias. Quais livros vou levar para ler, sabendo que lerei muito pouco ou quase nada, que o mar irá vencer, que os amigos irão vencer, que os esportes irão vencer? Estou levando Anna Kariênina; a nova biografia do Nietzsche; O ano da morte de Ricardo Reis; O mundo como vontade e como representação; Pequenos Amores, Crítica da Razão Pura. Quanta ambição para as férias, não? Mas vou tentar, pelo menos, terminar a Anna.

No fundo, o que quero é o mar e tudo aquilo que ele reprensenta. O mar e o magnetismo que ele exerce em mim. O infinito e aquilo que dele consigo tocar. A liberdade de me ser. Os outros. Os outros de mim mesmo. A vida. Os arredores.

Feliz Natal para todos que me leem. Feliz ano novo!
Férias!!!

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

24- O impossível eu

Este texto não sairia não fosse o fato de eu ter visto uma entrevista com o Paulinho Moska falando sobre Zelig, filme do Woody Allen, não fosse o fato de eu ter assistido o próprio filme e se, durante todo esse ano, eu não tivesse sido tocado pela obra do Fernando Pessoa e pelas pessoas que gostam do poeta português. Tudo está no Pessoa. Tudo. E algo permeia todos esses personagens de que falei. Além, claro, daquilo que me inquieta e atravessa.

Zelig é um ótimo personagem, exagerado, na sua mania de se apropriar das qualidades das pessoas que estão próximas. Perto de um chinês, ele se torna chinês. Perto de um zé, ele se torna um zé (ainda que eu não saiba o que venha a ser isso exatamente...). Perto de você, ele se tornará você, tal e qual. O que me chama atenção no Zelig é a sua capacidade de ser outro. Mesmo que para isso ele acabe não sendo ninguém, nem ele mesmo. O Zelig é o exagero da despersonificação e da outridade. Mas, quem é que não sente um pouco de inveja de ser um Zelig, em possuir um pouco dessa sua capacidade de ser outro e, para falar com o Pessoa, ser plural como o universo?

A questão da identidade e da impossibilidade que ela condiciona. As formas possíveis de ser que, em nome daquilo que a gente chama de "eu", são trancafiadas em nome do próprio nome. Suspeito muito de que essa história de "eu" é uma invenção que veio a ser no homem como forma de habitar a existência. O princípio de identidade de Parmênides acabou vencendo o devir contínuo de Heráclito. Quem disse que a filosofia é sempre inatual, mesmo a antiga? Um conceito torna-se real na mendida em que o trabalhamos e o colocamos na vida. Então, tornamo-nos escravos da nossa memória de sermos nós mesmos? E esquecemos as possibilidade de ser que em nós lateja? Quantos "eus" existem e que não tomam vida na existência? O quanto você castra de sua possibilidade em nome de sua história, identidade e nome? A questão construída não é a do ganho em ser um só, mas da perda em não poder ser vários.

Fernando Pessoa. Tudo está no Pessoa e todos estão no Pessoa. O quanto ele nos mostrou da potência de ser! O que é o seu projeto literário calcado nos heterônimos se não essa mensagem: amigo, você que é real, que acredita no real, pode superá-lo. Você, inclusive, pode superar a si mesmo deixando-se ser, ser como os outros, ser como as coisas, o universo inteiro, afinal, sem o prejuízo de se perder ao ser tantos. Olhe, capture, aprenda com uma planta, uma pedra, um pássaro, o outro que você ama ou odeia, mas aprenda que o outro é sempre possível. O outro é sempre maior que o eu, e por isso possível, e talvez mais real que isso que você chama de real e de "eu". Não perca tempo nas amarguras de ser, nos ressentimentos que envolvem a vida, de ter nascido assim e não outro, recrie-se e extrapole o ressentimento, a mágoa de não ser ou não ter sido, o que talvez importa é sempre o passo adiante, a porta adiante a se abrir, a abertura que nós mesmos criamos como invenção de um novo mundo. Eu posso ser eu, o outro, e todo o meio, a ponte, aquilo que trafega e flutua entre o presente o passado e o futuro. Eu, não mais uma invenção que me fecha, mas uma abertura para outros "eus". Devir, tornar-se, a mudança, é sempre mais real que a identidade e o imobilismo. Não há nunca o mesmo "eu", ainda que se queira, durante os dias e as horas. 

Romper com o nascimento da carne, como gosta de escrever Deleuze. Criamos nós mesmos novos nascimentos e novos rompimentos, até muito mais do que achamos, estamos sempre a colocar novas datas, novos motivos e desejos, nisso que chamamos "identidade". A identidade pode ser um péssimo hábito de se lidar apenas e constantemente consigo mesmo.

Ano novo chegando, abrindo novas portas e formas de ser. Formas que ainda não conheço e que amarei encontrá-las. No fundo, quem não gostaria de ser do tamanho do mundo para nutrir toda a vida que há na existência. Um corpo, um tempo, um eu: é sempre muito pouco para o tamanho da vida. Então, antes que a terra nos coma, vamos fazer como o Cazuza: canibais de nós mesmos. E mais, canibais da vida, do outro.