domingo, 16 de maio de 2010

5- Um destino absurdo

Para H.C.G.


Este texto é inspirado em Borges. Na possível coerência que pode haver entre as paixões. Além de seus livros, a literatura nos une. E o destino absurdo é esse: dedicar-se à literatura de forma dilacerada como se ela fosse a pedra fundamental da humanidade, àquilo sem o qual ninguém consegue viver. Engano. Todos conseguem viver sem a literatura, inclusive eu que consigo ficar plenamente bem (uns 5 dias?) sem ela. Quando há gente, quando há felicidade, quando há amor, quando tudo parece fazer sentido.

Mas logo um pequeno comichão no organismo, se é no cérebro, no coração, ou no esôfago, eu não sei, parece projetar uma necessidade. Será que tudo pode ter sentido pleno por muito tempo? O quanto dura uma felicidade? E este sol, este mar, este amor? Existem? O que é verdade nisso tudo? Será isso, só isso? E ai, amigo ou amiga, leitor ou leitora, o mundo escurece (ou clareia!) e me sinto impelido para um novo tipo de encontro, uma velha amizade, um aconchego que nasce justamente da batalha, do tédio, da raiva, da injustiça, da desesperança...e eis a literatura.

O certo é que eu não consigo viver muito tempo sem ela, sem a filosofia, sem os livros, sem a sensiblidade que ela evoca. E o destino, no limite do desejo e do conhecimento, parece se tornar absurdo... Porque um livro não basta. Conhecer um mundo diferente é pouco. E um mundo quando nasce se desdobra, quem lê sabe. Não apenas nos contentamos em ler um livro de um autor, mas todos. E um autor também não basta. É preciso uma população inteira, uma época, uma tradição. E, assim, de uma hora para outra estamos envolvidos no nó da biblioteca, na esteira de todos os livros possíveis, de todos os conhecimentos dos mundo.

Claro, o conhecimento não basta. Só conhecendo todos os afetos, todas as formas de sentir, é que poderemos nos sentir saciados. Não conseguiremos. Então o nosso destino será esse mesmo, absurdo, de ler e reler tudo, de sentir e ressentir, de amar e de reamar tudo que na vida transborda ou chora, tudo que dói e não dói, tudo que é e não é.

E para que tudo isso? Para que sentir tudo? Para que saber tudo? O que é que conseguimos fazer com isso tudo? O mundo melhora com essa nossa sabedoria? E ainda, e mais grave ainda, nós melhoramos? Ou será que ficamos é mais confusos em existir nessa profusão de coisas que nos atingem por nosso própria vontade (pois basta não querer ser atingido e viver na paz, simplesmente...e sabemos que isso é bem real, talvez mais real que todos nós, leitores)? No final das contas, para que ler?

Talvez, seja o nosso destino o pior de todos. Mas nós o escolhemos.Ou, ao menos, não conseguimos sair dele facilmente. O que duvido é se realmente queremos sair dele. Se essa desilusão que sentimos no trajeto é mesmo uma desilusão ou uma provação mais sincera das coisas do mundo, na exigência mais terna e lúcida, de se lidar com o que a vida pede: a diferença, a dor, o fenecimento, a morte, a desilusão, o bruto, e tudo o mais que na paz não sentimos...

Não sei o que ficará de nós. Mas a cada livro que abrimos, a cada página virada, é uma tentativa de ser melhor, de aprender, de entender que uma existência é pouco para sentir tudo, que precisamos do outro, mais do que nunca é o outro que nos ensina. Na tentativa desesperada de aprender a sentir, e de tentar dar forma ao que sente (seja na literatura, na filosofia, na pintura, na musica, enfim, na arte) ele tenta reter uma parte da vida. Eis o seu, e o nosso, projeto humilde, a sua ambição irrisória diante do movimento do mundo, do transbordamento das coisas.

Seja lendo ou escrevendo o que tentamos é nos igualar, ciente da impossibilidade, à grandiosidade da vida, sempre maior do que nós.

Se conseguimos com isso melhorar o mundo, não sabemos. Outros também tentam por outras vias. Iguais na glória ou no fracasso.

Mas que ao menos, desse projeto, saia uma pessoa mais digna, mais sincera, que, se não conseguir através da literatura e da filosofia consertar um pedaço do mundo e do outro, o mínimo que seja, consiga, pelo menos, consertar um pouco de si, um pedaço, o mínimo que seja.

Ao destino absurdo então. Uma possível justificativa dessa vida...

3 comentários:

  1. Sim, a literatura é um acredoce veneno que brota da maçã mordida, e que vicia... e não há mesmo nenhuma razão nesse vício - como aliás em todo vício - afinal, a maçã está no escuro...

    Beijos.

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  2. Muito bom ,Zé ! Participo destes sentimentos de que fala.Sei da força que carregam de como fazem nossa vida uma ferida e um sopro, uma delícia de torturas,sempre queremos mais.
    Adorei!

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  3. Acho pertinente colocar esse depoimento do Bolaño extraido de 2666. Completa e conflui com o destino absurdo:

    “A literatura se parece muito com a luta dos samurais, mas um samurai não luta contra outro samurai: luta contra um monstro. Geralmente sabe, ademais, que vai ser derrotado. Ter coragem, sabendo previamente que você vai ser derrotado, e ir lutar: isso é a literatura”. “À literatura nunca se chega por acaso. Nunca, nunca. Fique bem claro. É, digamos, o destino, sim? Um destino obscuro, uma série de circunstâncias que fazem você escolher. E você sempre soube que esse era o seu caminho.” “A viagem da literatura, como a de Ulisses, não tem retorno.” “O brutal sempre é a morte. Agora e há anos e daqui a anos: o brutal sempre é a morte.”

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