quarta-feira, 26 de maio de 2010

6- De um certo platonismo no amor

E ainda dizem que a filosofia está distante da realidade. Distante é talvez a influência de um certo pensamento que não cansa de agir sobre a realidade. Assim, pois, pensamos e sentimos de forma menos originária do que acreditamos. Um exemplo?
Quem se atreve a dizer que nunca amou alguém platonicamente? No que consiste isso que tão comumente chamamos Amor Platônico e que não cessa de nos arrebatar nas nossas experiências afetivas? Que diabos tem a ver o filósofo grego com esse sentimento que agora pulsa em mim como verdade e particularidade quando penso na mulher amada? E eis Platão no meio do meu amor, num intervalo de quase 2.500 anos, com a cara mais descarada do mundo, segurando vela para nos iluminar...e que sombra ela proporciona...

Geralmente dizemos do Amor Platônico o mais latente, aquilo que salta logo aos olhos quando pensamos num ser que ama platonicamente, ou seja, um sentimento de exagero. Exagero avassalador, desmesura de um sentimento que não tem forma, que não cabe dentro da gente. Sofremos, choramos, mal comemos, mal dormimos, mal vivemos. E o pensamento e o coração imersos numa certa fúria de sonhos e idéias. Como diz Comte-Sponville, "Aliás, o que é estar apaixonado senão cultivar certo número de ilusões sobre o amor, sobre si mesmo ou sobre a pessoa de pela qual se está apaixonado?" É o exagero que marca, é uma dose muito alta de romantismo, o Amor Platônico. Mas por quê o exagero ao pensar no ser amado? E aqui está o rasgão que Platão faz na realidade. Só exageramos no amor porque idealizamos.

No banquete, obra do filósofo onde se discute o amor, existem duas vozes que repercutem: Aristófanes e Sócrates. Aristófanes reside em nós quase como domínio público. Quer ver? Ele aparece no Banquete nos contando um mito de como éramos: "Outrora nossa natureza não era como é hoje, era bem diferente. Cada homem constituía um todo, de forma esférica, com costas e flancos arredondados, tinham quatro mãos, o mesmo número de pernas, dois rostos totalmente idênticos num pescoço perfeitamente redondo, mas uma cabeça única para o conjunto desses dois rostos opostos um ao outro; tinham quatro orelhas, dois órgãos de geração e todo o resto e, conformidade." Eram três os gêneros da espécie humana: os machos, contendo dois sexos masculinos; as fêmeas, dois sexos de mulher; e os andróginos, com o sexo masculino e feminino. A força dessa espécie era tão imensa que resolveram desafiar os Deuses. Como punição para o desafio, Zeus os dividiu ao meio num corte vertical." Desde então, o destino é encontrar a nossa parte separada que irá nos completar perfeitamente. Encontrar a nossa alma gêmea, a nossa cara metade, que nos devolverá o êxtase de sermos Um novamente, total. O amor para Aristófanes seria essa completude,uma fusão, esse júbilo ao encontrar o ser que desde sempre é, também, nós mesmo.

Platão, na voz de Sócrates, refuta Aristófanes. O sentimento de amor, esse com que buscamos a nossa metade, não pode ser nunca completude. É incompletude. Só buscamos no outro o que nos falta. Só desejamos o que não temos. Se estamos sempre fissurados, esse sentimento que nos movimenta em direção ao outro é o Amor. Amor por nós mesmos, amor por aquilo que não somos e que temos que reconstituir. Mas, na busca por essa totalidade, a própria busca é o sofrimento, mas um sofrimento ligado a um certo prazer de conquista, de sonho. Porém, Eros nunca está saciado.

O ponto comum entre as duas teorias está talvez na idealização. Seja sendo completude ou incompletude, o que nos move é uma certa idéia, um certo ideal que temos de alcançar através da pessoa amada, através do amor. Um certo paraíso. E eis aqui também o mito da caverna para reforçar a grande luta de Platão em nos conduzir para um mundo Ideal. O homem libertado de seus grilhões onde só via sombras, agora vê a luz, vê a verdade das coisas. O amor platônico não seria um estado que buscamos onde vemos um mundo com mais verdade, com mais clareza,com mais harmonia, onde tudo é menos vacilante, como a sombra que não cessa de oscilar, do que é? A busca pela completude, essa beleza solar de tudo, não seria um estado de imutabilidade onde reinaria a paz total?

Não podemos deixar de elogiar a grande alegoria que faz Platão e o caráter revolucionário desse mito. O homem libertado, o homem que não se permite terminar a busca de um mundo melhor - Ideal - é o elogio que Platão parece fazer. E talvez seja essa a imagem mais forte que retemos dele, do homem que não se aliena numa visão com antolhos, que olha pros lados e pra trás, sempre almejando subverter o que está posto. Bem sabemos como precisamos idealizar nos campos de nossa realidade que já estão secos e infrutíferos.

Toda idealização é uma violência contra o real.

Mas me parece que, nos domínios do amor, essa idealização do outro soa um pouco desrespeitosa. Nesse rasgão que Platão faz na realidade, pela idealização, ele deixa de legitimar aquilo que existe por si mesmo como o estrangeiro da nossa idealidade. Porque o outro não pode possuir a sua própria força, como algo que existe por si e para si? Uma sombra também existe para si e está tão impregnada de verdade como a luz. Nessa nossa busca do amor idealizado não desejamos o outro como ele é, nos seus devires e singularidades, mas como representação de nós mesmos, do ser ideal que um dia montamos para nós. E quantos amores já perdemos nessa idealização! Quantos! O outro para nós carece de ser ele mesmo! O outro é sempre violentado em nome de uma idealidade! E o quanto de real matamos, e quantos outros já matamos, quantas realidades! A idealidade pelo que violenta também impossibilita outras realidades que podem nascer fora de nós.

E o ser platônico no final de sua idealização frustrada - o outro por mais perfeito que seja frustra a idealização... - no fim da relação que não deu certo ainda diz com um certo ressentimento: você não era como eu imaginava, me decepcionei com você, pensei que você era uma coisa mas é outra...

O outro me parece ser o lugar que não permite fincar bandeira. O outro não se deixa dominar. E podemos amar a outra pessoa assim como ela é? Sim. O outro, indeterminado, alheio ao que conhecemos, novo, singular, real (mais real do que qualquer idealização) nos permite um júbilo pelo simples fato de exitir."Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa", como nos lembra Pessoa. A paissagem que não possui o homem e nos encanta. Inexorável e apaixonante.

E o amor que é também da ordem do real não se permite idealizar. O amor é sempre outro. O outro é o real que violenta a idealização.

domingo, 16 de maio de 2010

5- Um destino absurdo

Para H.C.G.


Este texto é inspirado em Borges. Na possível coerência que pode haver entre as paixões. Além de seus livros, a literatura nos une. E o destino absurdo é esse: dedicar-se à literatura de forma dilacerada como se ela fosse a pedra fundamental da humanidade, àquilo sem o qual ninguém consegue viver. Engano. Todos conseguem viver sem a literatura, inclusive eu que consigo ficar plenamente bem (uns 5 dias?) sem ela. Quando há gente, quando há felicidade, quando há amor, quando tudo parece fazer sentido.

Mas logo um pequeno comichão no organismo, se é no cérebro, no coração, ou no esôfago, eu não sei, parece projetar uma necessidade. Será que tudo pode ter sentido pleno por muito tempo? O quanto dura uma felicidade? E este sol, este mar, este amor? Existem? O que é verdade nisso tudo? Será isso, só isso? E ai, amigo ou amiga, leitor ou leitora, o mundo escurece (ou clareia!) e me sinto impelido para um novo tipo de encontro, uma velha amizade, um aconchego que nasce justamente da batalha, do tédio, da raiva, da injustiça, da desesperança...e eis a literatura.

O certo é que eu não consigo viver muito tempo sem ela, sem a filosofia, sem os livros, sem a sensiblidade que ela evoca. E o destino, no limite do desejo e do conhecimento, parece se tornar absurdo... Porque um livro não basta. Conhecer um mundo diferente é pouco. E um mundo quando nasce se desdobra, quem lê sabe. Não apenas nos contentamos em ler um livro de um autor, mas todos. E um autor também não basta. É preciso uma população inteira, uma época, uma tradição. E, assim, de uma hora para outra estamos envolvidos no nó da biblioteca, na esteira de todos os livros possíveis, de todos os conhecimentos dos mundo.

Claro, o conhecimento não basta. Só conhecendo todos os afetos, todas as formas de sentir, é que poderemos nos sentir saciados. Não conseguiremos. Então o nosso destino será esse mesmo, absurdo, de ler e reler tudo, de sentir e ressentir, de amar e de reamar tudo que na vida transborda ou chora, tudo que dói e não dói, tudo que é e não é.

E para que tudo isso? Para que sentir tudo? Para que saber tudo? O que é que conseguimos fazer com isso tudo? O mundo melhora com essa nossa sabedoria? E ainda, e mais grave ainda, nós melhoramos? Ou será que ficamos é mais confusos em existir nessa profusão de coisas que nos atingem por nosso própria vontade (pois basta não querer ser atingido e viver na paz, simplesmente...e sabemos que isso é bem real, talvez mais real que todos nós, leitores)? No final das contas, para que ler?

Talvez, seja o nosso destino o pior de todos. Mas nós o escolhemos.Ou, ao menos, não conseguimos sair dele facilmente. O que duvido é se realmente queremos sair dele. Se essa desilusão que sentimos no trajeto é mesmo uma desilusão ou uma provação mais sincera das coisas do mundo, na exigência mais terna e lúcida, de se lidar com o que a vida pede: a diferença, a dor, o fenecimento, a morte, a desilusão, o bruto, e tudo o mais que na paz não sentimos...

Não sei o que ficará de nós. Mas a cada livro que abrimos, a cada página virada, é uma tentativa de ser melhor, de aprender, de entender que uma existência é pouco para sentir tudo, que precisamos do outro, mais do que nunca é o outro que nos ensina. Na tentativa desesperada de aprender a sentir, e de tentar dar forma ao que sente (seja na literatura, na filosofia, na pintura, na musica, enfim, na arte) ele tenta reter uma parte da vida. Eis o seu, e o nosso, projeto humilde, a sua ambição irrisória diante do movimento do mundo, do transbordamento das coisas.

Seja lendo ou escrevendo o que tentamos é nos igualar, ciente da impossibilidade, à grandiosidade da vida, sempre maior do que nós.

Se conseguimos com isso melhorar o mundo, não sabemos. Outros também tentam por outras vias. Iguais na glória ou no fracasso.

Mas que ao menos, desse projeto, saia uma pessoa mais digna, mais sincera, que, se não conseguir através da literatura e da filosofia consertar um pedaço do mundo e do outro, o mínimo que seja, consiga, pelo menos, consertar um pouco de si, um pedaço, o mínimo que seja.

Ao destino absurdo então. Uma possível justificativa dessa vida...

sexta-feira, 7 de maio de 2010

4- O que acontecerá em 2666?


A primeira coisa que tenho a dizer é que eu estarei vivo até que este dia chegue (assim espero...). Já chegou para os outros, mas para nós brasileiros a previsão é que chegue no dia 20 de maio. Bem, não se trata de uma nova profecia e nem do próximo fim do mundo. Trata-se do romance póstumo do escritor chileno, Roberto Bolaño, que a Companhia das Letras lança no fim do mês.

A minha expectativa é grande, imensa. E isso porque sou um leitor ávido de romances. E esse é grande, é enorme, e além do tamanho (856 páginas, mas as edições estrangeiras colocam o livro com mais de mil), a previsão é de que seja realmente um romance magistral, daqueles romances de vanguarda na linha de Proust e Joyce. É certo que estamos carentes de novos romances paradigmáticos. A impressão que temos é que nada realmente de mágico acontece na literatura. E a questão da genialidade de Bolaño parece suprir muito mais a carência de uma expectativa do que de um fato consumado. Na verdade esse fato, mesmo que real, só se consumará com o tempo, com o seu funil inquebrantável que separará o joio do trigo, a genialidade do banal.

Existe algo de diferente em Bolaño. Algo da natureza semelhante a Rimbaud e Lautréamont, não por acaso os seus poetas favoritos. Bolaño é meio maldito, mas também é um estóico. Algo que caminha na corda bamba da dor entre o abismo e...e o que? Nenhuma ideia de paraíso do outro lado. Mas Bolaño não cessa de ser irônico consigo mesmo e extrai de toda a dor que contém a sua vida e a literatura um lado do espírito que se mantém indefectível diante da névoa que lhe obnubilava a visão. Bolaño fumava muito. Será que essa névoa era fruto de seu próprio ventre ou do ventre do mundo?

O que acontecerá em 2666? E o que acontecerá conosco depois de ler 2666? Para nós que amamos a literatura o livro parece ser um acontecimento que nasce com ar de imperativo categórico. E é um livro, pelo que pude saber dele, que trata também da própria literatura. Não seria interessante a literatura renascer quando o olhar está voltado para ela mesma e não mais para o mundo? Se o nascimento será belo ou não, não sabemos. A verdade é que o livro já parece se tornar Cult antes mesmo de ser lido. Algo meio oracular. Como numa tragédia grega onde o herói nasce determinado a ser aquilo que é independente do caminho que escolher.

Bolaño morreu cedo, de insuficiência hepática em Barcelona, em 2003. Tinha quase 60 anos. Não sei, mas a morte de Bolaño me lembra a morte de Proust. E aí, é claro que as circunstãncias penumbráticas em que a obra foi escrita me lembra também o desafio da escrita que foi também gerar Em busca do tempo perdido. Semelhanças?

Enrique Vila-Matas e Susan Sontag teceram grandes elogios ao chileno.

Dele, só li Noturno do Chile. A impressão foi boa. Mas desejosa de ser melhor. Talvez à espera de seus grandes romances. Impressão também de que Bolaño escreve bem e fácil. Lemos na correnteza as suas páginas. Mas um comichão a cada página virada me dizia sempre que talvez ele estava dizendo mais do que eu conseguia ler. E, ao terminar o romance, tive a certeza disso. Bolaño é sutil. É subversivo. E consegue dizer muito nas entrelinhas, mas o não dito só se completa com a investigação de nosso próprio pensamento.

Bolaño é também conhecido pelo ar detetivesco de seus romances. Finge que faz um romance policial. Claro, o que ele busca é outra coisa, mesmo que para isso tenha que investigar a morte e o desaparecimento (lembremos que a sua literatura é fruto da década de 70 e de seu exílio pela ditadura). É mero estratagema o fato de Os detetives selvagens tratar da busca de uma poeta desaparecida. Em 2666 busca também um crítico desaparecido. Bolaño parece ser senhor de sua arte e de seu estilo. Comecei a ler Os detetives selvagens e trata-se de uma escrita violenta. Bolaño escreve por uma literatura mais sincera. Por uma literatura sem medo. Vila-Matas fala que este romance soube seguir o caminho aberto pelo O jogo da amarelinha do Cortázar. E não apenas estruturalmente, mas subjetivamente também. Parei de ler porque quero ler o Bolaño como merece. E agora, minhas prioridades são outras. Agora quero ver quando 2666 chegar...aí pode ser o começo de um novo mundo. Que caminho ele abrirá? Vamos ver.

O texto vale mais pela dica para conhecer um novo autor do que pelas conjecturas que fez...