Quem leu o primeiro livro de Tatiana Salem Levy, A experiência do Fora:Blanchot, Foucault, Deleuze, poderia ir para o seu romance de estreia, A chave de casa, imaginando um romance teórico, cheio de experimentações do Fora, interseções entre os conceitos desenvolvidos ali e a prática escrita. Muito também se saiu sobre o romance por ser ele um acompanhamento de um tese de doutorado, um romance-tese. Pois bem. Vamos a um ritual básico meu antes de comprar qualquer livro. Pesquiso na internet, leio algumas entrevistas, pesquiso mais um pouco e pronto. Vamos à livraria. Olhamos o livro, folheamos algumas páginas, e, nesse ritual todo entre começar a pesquisa sobre o livro e, finalmente, adquiri-lo, toda uma imagem se desfaz para dar lugar a uma outra.
O que vemos é um romance de afectos. E estão enganados aqueles se, por isso, não verem no romance qualquer hereditariedade com o seu livro anterior. Deleuze dizia: a arte é criação de afectos e perceptos. No seu romance de estreia o que encontramos são afectos em estado puro. Uma verdadeira criadora deles. E é por eles que Tatiana nos faz enveredar sem medo na busca de sua protagonista.
Os afectos são fragmentados, assim como todo o romance. São várias histórias que se colocam ali: a personagem imobilizada (não por um problema físico, mas espiritualmente) que não sai da cama e que recebe a chave de seu avô para ir em busca de todo um passado; a história de seu avô e da sua mãe. Mas nada é paralelo. Todos as relações estão interligadas pelos afectos que atravessam os personagens. E conseguimos ver neles (nos afectos) duas intensidades: a da dor e a da perda. São por essas duas linhas que tudo acontece.
Poderíamos ver nisso um pessimismo? Um romance doloroso? Sem dúvida. Quanto maior a dor melhor a autora nos dilacera com sua escrita. Melhor ela consegue captar toda a potência do sentimento. A dor da morte da mãe. A dor da sua relação amorosa. Mas de todas as dores a dor que Tatiana prefere é a dor do renascimento. Dor? Sim. Como não dizer que um parto não dói? Dói. E não cansamos de nascer chorando todos os dias.
Mas isso é porque também morremos todos os dias. A morte possui várias facetas além de sua cara comum de morte. Esta é apenas sua forma mais perfeita e acabada. Mas é outra morte a que nos habita constantemente. Quem é que não tem a sensação de estar morrendo um pouco a cada dia? E não somente pela culpa do tempo que sabemos ser sempre, para nós, negativo. São os acontecimentos que nos afligem qualquer tipo de dor, qualquer náusea, qualquer imobilismo, que nos matam um pouco a cada dia. Sempre que há imobilismo no ânimo (da alma e do corpo) há a morte com sua outra cara. Decepção amorosa, morte da mãe, um triste passado, são alguns dos exemplos que Tatiana Salem Levy nos coloca como forma breve de morrer. Forma breve que tende a se estender até a sua forma mais larga e infinita. E cada um sabe a morte que nos cabe diariamente.
Porém, o que lateja como indagação no romance é: se a vida não nos mata completamente ela também não cessa de nos ofertar com uma nova vida depois da morte. Se uma coisa morre em nós é dentro desse espaço vazio que uma outra coisa pode renascer. E se a vida nos dá uma chance de recomeçar, porque não? É nessa perspectiva que a personagem, cansada de morrer no imobilismo, parte em busca desse passado que lhe sugere o avô. E não interessa se ela encontrará a porta que a chave abre ou não. É a busca e o que encontramos nessa busca que se torna o grande aliado da vida. É uma mania nossa a de existir colocando um ponto final na nossa forma de viver. E insistimos em ser. E insistimos num amor fracassado desde o começo. E insistimos num passado. E é esse o imobilismo da forma no seu modo mais sutil.
O personagem não encontra nada do que buscou na sua aventura contra o imobilismo e, no entanto, encontrou exatamente aquilo que buscava: movimento, Kínesis. Se temos a chance de renascer todo dia, porque não? Porque não renascer mesmo, além do despertar habitual, com outro ânimo, com outra vida, com outro presente? Hein, você que me lê, porque não? Porque não tentar ser mais, mesmo que doa, mesmo que não encontre o que procura?
Logo no começo do romance encontra-se esse diálogo entre mãe e filha:
"Quero sair do lugar, mas ainda duvido se é essa a melhor escolha. [Não desanime. No início de uma partida, não existem escolhas melhores ou piores, apenas escolhas. É cedo para um julgamento.] Mas e se errar? Se me afundar ainda mais nesse poço de imprecisão e incerteza? Que garantia tenho de que não tropeçarei em mim mesma? [Não posso lhe garantir nada. Só posso prometer uma coisa:arrisque-se, e estarei sempre pronta a lhe estender a mão.]
Como bem disse Guimarães Rosa, e que Tatiana Salem Levy retomou usando de epígrafe no seu primeiro livro: "O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe pra gente é no meio da travessia." Pois então, que cada um busque o seu. Sem medo, sabendo que o medo lá estará. Sem dor, sabendo também que lá estará. E encontraremos. O que? Descubra. E nisso já estará um grande exercício para alma, um grande movimento...
nem me fale em encontros no meio da travessia... é, talvez ainda haja esperança para nós, seres humanos, verdadeiros cadáveres ambulantes. Temos que fazer de tudo para adiar a roedura dos vermes... sucesso com seu novo blog!
ResponderExcluirQuerido! Torço muito e leio sempre! Só não vale deixar a gente mal acostumada e depois sumir! Vá fundo! Beijo.
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