terça-feira, 28 de setembro de 2010

18 - Entre um pré e um pós


É chegada a hora. Não cabe mais sentir o cheiro de pré-clímax na sua própria vida. Esse ar é aquele ar monótono onde se espera, o que quer que seja, sentado esparramado no sofá a olhar o relógio, segundo após segundo, arrumado com o seu melhor terno, pronto (para o quê?), tempo atrás de tempo. E no final do tempo, onde não há click, campainha ou chegada, retorna-se para o fundo do quarto, o fundo de si, o fundo em si, o fundo. Tempo atrás de tempo. E no final do tempo. E no final do. E no final. E no. E.

Cheiro insuportável esse onde a vida espera. Irrespirável e impossível. O mesmo cheiro talvez do pós-clímax. Onde tudo já foi, onde o mirar para o passado é mera sombra, no precipício do sonho, na corda bamba, finíssima, daquilo que foi real. Pós e pré são as duas faces de uma moeda que ninguém quer. E, no entanto, é aquela em que todos (sim, todos, eu, você, quem você ama, quem você ama, etc.) cunham com a mais pura matéria do tempo presente. Estamos sempre entre um pré e um pós. E nenhum dos dois vale realmente a pena.  

É chegada a hora de enfrentar os grandes. E cada um que coloque os seus gigantes onde lhe cabe. Os meus, por exemplo, podem ser os livros (exitem outros), os grandes autores que renego na mera desculpa de nunca estar pronto para enfrentá-los devidamente. José Maurício X James Joyce. David X Golias. Só que o embate nunca houve porque o David nunca estava pronto. Sabedoria de David: David não esteve pronto em hora nenhuma, inclusive na hora que o sangue do inimigo lhe espirrou na cara. E quantos gigantes fazemos crescer durante a vida porque somente nos distanciamos dele? A ilusão de ótica se dá pelo avesso: quanto mais perto menor o gigante. E, quantos não estão nascendo dentro da gente como doença, medo, vazio, alimentados por essa temeridade do futuro e do passado (sim, também do passado meus amigos...) de não sermos quem somos no momento em que somos? 

Porque sofremos de uma tendência para o não-ser, negativamente. O não-ser pode ser o plural que nos habita, esse é positivo, como possibilidade. Mas essa tendência ao não-ser é apenas o lado obscuro do próprio não-ser que se configura como espera. Potência insone que não se desenvolve. Não porque não habita um fruto, mas porque espera que esse fruto esteja pronto para nascer. Eu mesmo nasci de 7 meses. Totalmente inacabado. Porque não levar essa incabamento como a verdade até o fim?

Não corremos risco nenhum de morrermos de indigestão por devorarmos toda a vida que se apresenta para nós. Não corremos o risco de morrermos de tédio também. Porque a própria natureza da vida é sempre mais plural do que a nossa para a pluralidade. A vida é mais inesgotável do que nós mesmos. O tédio só é um problema para aqueles que não sabem ver ou para aqueles que partem para a fome sempre com a mesma vontade de comer. Até a vontade mais rasteira ganha em ebulição na aposta pela diferença, na ótica de se entrar no mesmo prazer por vias diferentes. O pré-clímax é uma ideia que deve morrer pelo caminho. O pós-clímax é uma ideia que tende a jamais se realizar. O nosso drama é que ambas permanecem mais vivas do que nunca dentro da gente. Vitalizadas pelo medo. Medo de perder a vida, medo de não ter a vida. Mas a vida só se tem no momento em que é vivida e nada mais. Quando se vive já se perde e já não se tem. E sempre na certeza de que, concomitantemente, ganhamos coisas novas para novamente perder. O medo do futuro é uma ilusão que o presente evapora. O medo do passado é um pesadelo que o presente acorda.     

Digo isso porque é chegada a hora. A hora de não mais ter hora. Momento do enfrentamento com o que somos. Disso que somos. O melhor que conseguimos ser sem o real enfrentamento. Porque até a espera cansa do seu próprio cheio nauseabundo. E você não vai querer que a sua vida seja lembrada por esse cheiro de espera, não é? Vai? Repito: essas palavras sempre valem primeiramente para mim. Essas palavras sempre se parecem com algum tipo de espelho onde, no confronto, vou descobrindo e revelando uma nova imagem de mim mesmo. Sei que é chegada a hora de enfrentar-me. Para me tornar maior. A dignidade de enfrentar a si mesmo, os nosso limites, é sempre o combate mais belo que travamos com a vida. É chegada a hora. É chegada a. É chegada. É.

(A imagem não corta a cabeça do inimigo, mas sim a própria cabeça que se renova como um sempre diferente rabo de lagartixa todas as manhãs...)

terça-feira, 21 de setembro de 2010

17- Íntimos do movimento: potência e ato.


A amplitude de um conceito é medida pela vida que é capaz de inaugurar. Um conceito jamais perde a sua potencialidade, a capacidade de atuar nos espíritos mediante a força criadora de que é composto. Ele está presente como um halo em volta do sol, disposto para aqueles que olham para além do centro iluminado. Conteúdo que se desenvolve na medida em que o continente se abre. Somos nós que permitimos a força de atuação de um conceito. Mas é importante sempre dizer que um conceito é, acima de tudo, invenção, criação, antes de ser real. É mais que reflexão e entendimento. Não é uma adequação entre uma ideia e o real. Um conceito só funciona realmente quando o pensamos como criação.

Ando pensando muito no conceito de Ato e Potência de Aristóteles. Somos feitos de matéria e forma. A matéria diz respeito a potência, a forma ao ato. A matéria espera a forma para ser real, é a forma que atualiza a matéria. Mas é esta quem determina a potencialidade da matéria, é ela quem anuncia os limites para que a forma atue. Até onde a forma vai depende, exclusivamente, da matéria, mas a matéria só alcança sua determinação com a forma. Não existe uma sem a outra. Mas, para que isso tudo?

Porque não deixamos de ser isso: potência e ato. O movimento entre um e outro. Necessariamente entre um e outro. Não paramos de movimentar essa matéria de que somos feitos em novas formas de ser. O devir é esse movimento eterno entre potência e ato em atualizações necessárias e voluntárias. Na natureza, irremediavelmente, necessária. No homem, necessárias e voluntárias. E para que todas essas atualizações?

Aristóteles na Metafísica explica mais ou menos assim: toda substância, todo ser, toda matéria e forma, só muda porque deseja a perfeição. O movimento é da ordem do desejo. E o desejo é da ordem da perfeição. Além disso, todo movimento se dispõe em nome da causa final. Nos movimentamos porque almejamos o nosso limite, o nosso máximo, a nossa perfeição de ser. A inércia ou a apatia é a corrupção dessa perfeição, debilidade do ser que, já no auge de sua forma e matéria, não consegue manter a total potencialidade revelada no ato puro. O que queremos em cada ato nosso é alcançarmos esse ato puro que um dia poderemos fazer. Ato em que estariamos todo. Alguém já conseguiu?

A contraposição, a ideia que nos serve de exemplo e de limite é o Motor Imóvel aristotélico. O Motor Imóvel é o divino, pleno, que está no meio do universo. Ele é o ato puro, a realização de todas as qualidades. Imóvel porque sendo pleno não deseja mais nada. Mover-se para que?

Fica claro o quão longe estamos desse Motor Imóvel e o quão próximos ficamos íntimos do movimento. Essa intimidade com aquilo que nos é natural e que no entanto não se realiza por inteiro. A vida é essa abertura possibilitada pelo movimento que não conseguimos romper.Um conceito só tem validade quando inaugura uma possibilidade para extrapolarmos o nosso ser. Um conceito é essa chave para abrirmos a vida. Vamos para o movimento? Vamos, cada vez mais lúcidos dele, de seu sentido, de seu gosto?

E o quanto há de matéria sem forma em mim, de forma na espera da matéria. E você leitor, o quanto há em você de irrealizável?

terça-feira, 14 de setembro de 2010

16- Uma frase de Onetti

Ainda não me tornei um escritor de verdade. Daqueles que escrevem páginas e páginas por dia, horas a fio, trabalhando no papel ou na cabeça a arquitetura das palavras, fazendo valer com isso o nome que lhe chamam. Não sou nada disso. Ainda. Estou muito longe de ser. Mas é cada vez mais gratificante para mim sentar e escrever. Prova disso é que os cadernos começam a se acumular aqui dentro de casa...

Porém, a cada trabalho ou tentativa de escrita sou, antes de mais nada, guilhotinado por mim. Coloco o papel na escadaria do cadafalso. Isso pode ser um problema pois, na medida em que mato a mim mesmo,acabo não criando nada. E ontem, participando da reunião semanal dos Clubes dos Pensadores de Niterói, o meu grande amigo e presidente do clube, Ayr Tavares, lança justamente uma frase que pinça o nervo do meu dilema: O excelente é sempre inimigo do bom. E vocês já entenderam o porque, não é? A gente almeja tanto a perfeição pelo pensamento que acaba não criando nada. E isso, tenho certeza, não é bom.

Estou no eterno dilema de que é possível escrever sobre tudo e de que de tudo ainda não sabemos nada o suficiente bem para poder dizer. E hoje em dia é sempre tentador dizer, escrever. Geralmente para falar mal. Como é tentador escrever sobre um livro que se abandonou no meio. Como é tentador falar mal de alguém que acabou de agir mal. Agiu mal, e no entanto agiu. E eu que, na medida em que procuro dentro de minha cabeça a ação perfeita, não fiz absolutamente nada?

Ah, como é tentador escrever. Hoje, todo mundo tem o seu espaço, o seu blog, o seu twitter. E quanta coisa, não? Mas sim, quantas realmente nos afetam? Nos perdemos na profusão de tantas palavras.

Na verdade, escrevo esse post para  evocar  uma frase de Onetti, escritor uruguaio, e que não me sai da cabeça: As únicas palavras que merecem existir são aquelas palavras melhores que o silêncio. Essa frase me comove e me faz rir. Por quê haveríamos de dizer algo melhor que o silêncio? Vocês já escutaram o que o silêncio nos diz?

Acabo de ler a epígrafe do Ricardo Reis que Saramago colocou, ironicamente, no seu livro O ano da morte de Ricardo Reis: Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo. E o silêncio às vezes é de um contentamento...

O que estou realmente buscando é o equilíbrio entre o dizer bem, a tagarelice e o silêncio.

Mas essa frase de Onetti é um conselho para qualquer escritor. Drummond já sabia disso. E alguém já me disse que não foram de palavras que a Ilíada foi feita. Se isso for verdade, quero cada vez mais escrever sem as palavras, nos interstícios da linguagem, atravessando o silêncio, na borda de cada letra. Escrever parece sempre ser algo que beira a impossibilidade. Talvez seja isso escrever: beirar a verdade de cada coisa. A palavra mais próxima do silêncio que no seu hálito brumoso nos dá algo quase invisível e que no entanto existe. Buscar as palavras mais próximas do silêncio, então, será isso?