Quem me conhece nos assuntos literários sabe que gosto de uma determinada reação quando se lê algo muito valioso. Acaba de se ler uma frase e o que acontece? Rimos. A nossa boca corre para o lado, alarga-se como se estivesse tomada de uma euforia e grande luz. Isso é o que gosto de chamar do riso da verdade. Rimos de espanto ou de torpor quando encontramos uma bela verdade. Ou talvez nem isso, rimos quando encontramos uma bela iluminação, um princípio de voo que nos salta do senso comum das ideias, num aforismo, num poema, num trecho de romance. É só vocês puxarem um pouco pela memória, vai? Vai me dizer que só eu que tenho essa reação quando vejo uma bela verdade? Vão me deixar sozinhos? Não, né? É só lembrar.
Acontece que tenho rido muito. Mentira, muito não. Mas quando esse risinho quase cafajeste de quem encontrou um tesouro perdido aparece ele vale pelo muito. É grão de ouro no meio da poeira. Iluminação, catarse, euforia, serenidade. Será que vale a pena aqui colocar aquilo que me fez rir? Poderia colocar aqui frases da Clarice novamente (a Clarice é tão íntima para mim que já esqueci até o sobrenome), dos aforismos do Nietzsche, de belas frases extraídas do conto do Mia Couto, Olhos nus: olhos, na coletânea Essa história está diferente: dez contos para canções de Chico Buarque, mas não quero fazer nada disso. Vai que ninguém ri? Não, não...
Semana passada revi o filme O passado do Hector Babenco, adaptação do livro homônimo do escritor argentino Alan Pauls. E não parei de rir o filme inteiro. Não, não é um filme de comédia. É um filme pesado, intenso, e qualquer outro adjetivo aqui é pura besteira. Se o filme marca, o livro então deixa a gente em carne viva. Mas, então, porque eu ri? Na primeira vez que vi o filme saí com a expressão tensa do cinema. Não entendia as reações dos personagens, a problemática da coisa toda, etc, etc. Mas sabia que ali havia algo muito sério sendo exposto. E fui para o livro. Que também me deixou perplexo. Mas com o tempo a gente constata o seguinte: é isso mesmo. E por isso rimos. Quando virem o filme ou lerem o livro vocês vão achar a Sofía uma louca, o Rímini um palermão, dois seres incompreensíveis para o real. Mas esperem. Guardem as ações e reações deles. Os gestos, os motivos que os levam a fazer tal e tal coisa. E aí, meu amigo, quando não tiver mais jeito.... vem o riso da verdade dessa coisa absurda, e que no entanto nos dá sentido, que é o amor. Olhem, reparem em Sofía e Rímini. Ali há um diagnóstico de nossa situação amorosa. Boa? Ruim?Ah...aí cada um que tire a sua conclusão...certamente haverá um riso...de desespero ou de alegria...
Bem, eu já escrevi sobre O passado no meu blog anterior. Para quem não leu e para não ter que ficar catando no outro blog segue aqui o texto. E não percam essa experiência que é ler o Alan Pauls!
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Acabo de terminar O passado, obra do argentino Alan Pauls, e saio inquieto, não menos inquieto do que quando saí do cinema para ver a adaptação do livro pelas mãos de Hector Babenco. No primeiro encontro saí tão aturdido com a história, a relação ou não-relação de Sofía com Rímini, que fui direto na livraria comprar a sua seiva original. Demorei alguns dias para iniciá-lo e hoje, seis meses depois, concluo a obra. Mas esse ponto final é apenas simbólico: nada se conclui, nada termina.
Essa frase, se não a retirei do livro, encontra lá sua vizinhança. Poderia dizer que é uma frase de Sofía, o tema do livro, uma danação que descobrimos, é uma verdade, é a encarnação da memória, um postulado do amor...tantas coisas extraímos da ambição de Sofía. No final das contas, nem nos perguntamos mais se Rímini volta a amar Sofía ou não, se diante do final enigmático as portas estão para sempre fechadas ou abertas, se Sofía finalmente obtém o seu sucesso. De um certo modo sim, mas a grande questão, independente de Sofía, é que Rímini fracassa. Fracassa em esquecer, fracassa em tentar acelerar o tempo natural da memória. Fracassa em não querer saber o que será decantado ou não. É contra esse empreendimento louco que Sofía arma batalha. Não mais contra os novos amores de Rímini, mas contra esse ambição louca de esquecimento necessário que Rímini impõe a si mesmo para se desligar totalmente de Sofía.
Mas ela possui uma aliada: a vida. É ela que se interpõe entre a memória e o esquecimento. É ela que não para de reanimar as relações aleatórias que faz com que Sofía esteja na latência do presente. Sófia não é só fantasmagórica quando aparece para Rímini. Ele não volta para ela por causa de sua sedução e insistência. Há muito que Sofía desistiu de ligar, de procurar, de ser novamente tocada por Rímini. Vemos dois tipos de cansaços. Ambos se queixam, mas por motivos antagônicos. Sofía se cansa porque ela é o grande arquivo vivo que está condenada a lembrar de tudo. Rímini se cansa porque não para de fugir, de se esconder, para escapar de qualquer relação com o seu passado. Rímini é tão fantasmagórico quanto Sofía. Quem sofre mais, aquele que lembra ou aquele que esquece?
É dessa memória involuntária, não a mesma de Proust, se bem que possui relações, que Sofía extrai a sua teoria Mnemônica do Amor. É por ela, pela memória que a fagulha de amor pode ser reconstruída. De nada adianta seduções, reconquistas. O ser amado pode se ligar ou se desligar com facilidade. Agora da memória onde o amor habitou não. Aqueles que esquecem a parcela de vida que foi construída pelo amor, esses são irrecuperáveis. Aqueles que nutrem mesmo o ódio por quem amou, esses estão dispostos a ser inoculados novamente, neles ainda se mantém a matéria que o amor apossou, mesmo que desvirtuada. É pela memória, pela raiz, que é possível fazer nascer de novo o ecossistema do amor, qualquer amor. Quando Rímini diz que não consegue se lembrar de algum detalhe, que para Sofía é nítido, ela o considera morto e se desespera. O esquecimento é um espetáculo que se representa todas as noites...Lê num determinado ponto Sofía. Pois como extrair vida, fazer o caminho mudar de direção e fruto, de um tecido morto, sem memória? É a memória o lastro entre a matéria e o espírito, entre o amor e nada. Como reconstruir a membrana do amor sem a matéria de que ela é feita?
Nada se conclui, nada termina. Querendo ou não somos vítimas da vida que nos condena a lidar com aquilo que construímos, querendo ou não. Condenados a lembrar? Numa vertente Sartriana da liberdade. O homem está condenado a ser livre. O homem está condenado a lembrar. Condenado a conviver com aquilo que fomos, irreversíveis...é Sofía que mesmo condenada sabe ler os signos da liberdade de sua condenação. É Sofía quem lê os signos amorosos. Os signos amorosos são da ordem da eterna releitura...assim como esse grande livro...
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Ah....e como falta coisa a dizer...