segunda-feira, 30 de agosto de 2010

15- O riso da verdade + Sofía e Rímini

Quem me conhece nos assuntos literários sabe que gosto de uma determinada reação quando se lê algo muito valioso. Acaba de se ler uma frase e o que acontece? Rimos. A nossa boca corre para o lado, alarga-se como se estivesse tomada de uma euforia e grande luz. Isso é o que gosto de chamar do riso da verdade. Rimos de espanto ou de torpor quando encontramos uma bela verdade. Ou talvez nem isso, rimos quando encontramos uma bela iluminação, um princípio de voo que nos salta do senso comum das ideias, num aforismo, num poema, num trecho de romance. É só vocês puxarem um pouco pela memória, vai? Vai me dizer que só eu que tenho essa reação quando vejo uma bela verdade? Vão me deixar sozinhos? Não, né? É só lembrar.

Acontece que tenho rido muito. Mentira, muito não. Mas quando esse risinho quase cafajeste de quem encontrou um tesouro perdido aparece ele vale pelo muito. É grão de ouro no meio da poeira. Iluminação, catarse, euforia, serenidade. Será que vale a pena aqui colocar aquilo que me fez rir? Poderia colocar aqui frases da Clarice novamente (a Clarice é tão íntima para mim que já esqueci até o sobrenome), dos aforismos do Nietzsche, de belas frases extraídas do conto do Mia Couto, Olhos nus: olhos, na coletânea Essa história está diferente: dez contos para canções de Chico Buarque, mas não quero fazer nada disso. Vai que ninguém ri? Não, não...

Semana passada revi o filme O passado do Hector Babenco, adaptação do livro homônimo do escritor argentino Alan Pauls. E não parei de rir o filme inteiro. Não, não é um filme de comédia. É um filme pesado, intenso, e qualquer outro adjetivo aqui é pura besteira. Se o filme marca, o livro então deixa a gente em carne viva. Mas, então, porque eu ri? Na primeira vez que vi o filme saí com a expressão tensa do cinema. Não entendia as reações dos personagens, a problemática da coisa toda, etc, etc. Mas sabia que ali havia algo muito sério sendo exposto. E fui para o livro. Que também me deixou perplexo. Mas com o tempo a gente constata o seguinte: é isso mesmo. E por isso rimos. Quando virem o filme ou lerem o livro vocês vão achar a Sofía uma louca, o Rímini um palermão, dois seres incompreensíveis para o real. Mas esperem. Guardem as ações e reações deles. Os gestos, os motivos que os levam a fazer tal e tal coisa. E aí, meu amigo, quando não tiver mais jeito.... vem o riso da verdade dessa coisa absurda, e que no entanto nos dá sentido, que é o amor. Olhem, reparem em Sofía e Rímini. Ali há um diagnóstico de nossa situação amorosa. Boa? Ruim?Ah...aí cada um que tire a sua conclusão...certamente haverá um riso...de desespero ou de alegria...

Bem, eu já escrevi sobre O passado no meu blog anterior. Para quem não leu e para não ter que ficar catando no outro blog segue aqui o texto. E não percam essa experiência que é ler o Alan Pauls!

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Acabo de terminar O passado, obra do argentino Alan Pauls, e saio inquieto, não menos inquieto do que quando saí do cinema para ver a adaptação do livro pelas mãos de Hector Babenco. No primeiro encontro saí tão aturdido com a história, a relação ou não-relação de Sofía com Rímini, que fui direto na livraria comprar a sua seiva original. Demorei alguns dias para iniciá-lo e hoje, seis meses depois, concluo a obra. Mas esse ponto final é apenas simbólico: nada se conclui, nada termina.

Essa frase, se não a retirei do livro, encontra lá sua vizinhança. Poderia dizer que é uma frase de Sofía, o tema do livro, uma danação que descobrimos, é uma verdade, é a encarnação da memória, um postulado do amor...tantas coisas extraímos da ambição de Sofía. No final das contas, nem nos perguntamos mais se Rímini volta a amar Sofía ou não, se diante do final enigmático as portas estão para sempre fechadas ou abertas, se Sofía finalmente obtém o seu sucesso. De um certo modo sim, mas a grande questão, independente de Sofía, é que Rímini fracassa. Fracassa em esquecer, fracassa em tentar acelerar o tempo natural da memória. Fracassa em não querer saber o que será decantado ou não. É contra esse empreendimento louco que Sofía arma batalha. Não mais contra os novos amores de Rímini, mas contra esse ambição louca de esquecimento necessário que Rímini impõe a si mesmo para se desligar totalmente de Sofía.

Mas ela possui uma aliada: a vida. É ela que se interpõe entre a memória e o esquecimento. É ela que não para de reanimar as relações aleatórias que faz com que Sofía esteja na latência do presente. Sófia não é só fantasmagórica quando aparece para Rímini. Ele não volta para ela por causa de sua sedução e insistência. Há muito que Sofía desistiu de ligar, de procurar, de ser novamente tocada por Rímini. Vemos dois tipos de cansaços. Ambos se queixam, mas por motivos antagônicos. Sofía se cansa porque ela é o grande arquivo vivo que está condenada a lembrar de tudo. Rímini se cansa porque não para de fugir, de se esconder, para escapar de qualquer relação com o seu passado. Rímini é tão fantasmagórico quanto Sofía. Quem sofre mais, aquele que lembra ou aquele que esquece?

É dessa memória involuntária, não a mesma de Proust, se bem que possui relações, que Sofía extrai a sua teoria Mnemônica do Amor. É por ela, pela memória que a fagulha de amor pode ser reconstruída. De nada adianta seduções, reconquistas. O ser amado pode se ligar ou se desligar com facilidade. Agora da memória onde o amor habitou não. Aqueles que esquecem a parcela de vida que foi construída pelo amor, esses são irrecuperáveis. Aqueles que nutrem mesmo o ódio por quem amou, esses estão dispostos a ser inoculados novamente, neles ainda se mantém a matéria que o amor apossou, mesmo que desvirtuada. É pela memória, pela raiz, que é possível fazer nascer de novo o ecossistema do amor, qualquer amor. Quando Rímini diz que não consegue se lembrar de algum detalhe, que para Sofía é nítido, ela o considera morto e se desespera. O esquecimento é um espetáculo que se representa todas as noites...Lê num determinado ponto Sofía. Pois como extrair vida, fazer o caminho mudar de direção e fruto, de um tecido morto, sem memória? É a memória o lastro entre a matéria e o espírito, entre o amor e nada. Como reconstruir a membrana do amor sem a matéria de que ela é feita?

Nada se conclui, nada termina. Querendo ou não somos vítimas da vida que nos condena a lidar com aquilo que construímos, querendo ou não. Condenados a lembrar? Numa vertente Sartriana da liberdade. O homem está condenado a ser livre. O homem está condenado a lembrar. Condenado a conviver com aquilo que fomos, irreversíveis...é Sofía que mesmo condenada sabe ler os signos da liberdade de sua condenação. É Sofía quem lê os signos amorosos. Os signos amorosos são da ordem da eterna releitura...assim como esse grande livro...

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Ah....e como falta coisa a dizer...

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

14- Os buracos da realidade

Acabo de reler Nove noites, do Bernardo Carvalho, agora motivado pelo Clube de Leitura Icaraí (grupo novo que está me acolhendo tão bem e que está gerando novos frutos existências, da mesma forma que o Clube dos Pensadores de Niterói). E a frase que ficou martelando na minha cabeça durante todo o livro foi: a literatura gosta de se embrenhar nos buracos deixados pela realidade. A literatura como arte de criar caminhos ainda não dominados pelo olhar do homem. Uma descobridora de espaços virgens, de territórios da alma ainda não cartografados. A literatura como devir, como movimento para tornar-se além do que se é. A literatura é contra o cansaço de existir. A literatura como movimento de fabulação para o homem ser mais, ir além do homem, para além, para além do mundo, para criar novos mundos e novas possibilidades de vida. A literatura é uma busca com caminho só de ida.

É assim que o narrador de Nove noites parte. Ele vai. E para saber o porque do suicídio do etnólogo americano, Buell Quain, no Brasil, ele não cessa de criar. A verdade do suicídio e as suas motivações, dentro da realidade, é objeto fracassado. O autor sabe, nós que o lemos sabemos também. Mas, então, para que ler o romance - ou ainda, para que criá-lo - se a verdade está fadada a morrer pelo caminho? É aqui que descobrimos que a literatura trabalha para muito além da verdade.

Se o Bernardo Carvalho estivesse realmente preocupado com a verdade não escreveria um romance. Ainda que o romance seja um duplo relato, um que podemos chamar de mais real que o outro (os depoimentos de Manoel Perna) a linha é sempre tênue. Está tudo misturado. E, para aqueles que leram ou lerão o romance, digo uma coisa: se existisse prova definitiva das motivações da morte do etnólogo não haveria romance. O suicídio de Buell Quain é um desses buracos deixados pela realidade que a literatura se apropria para criar.

Bernardo Carvalho sabe disso e nós dá grandes pistas para que isso se revele, num jogo metalinguístico sobre sua própria criação, na narração de Manoel Perna: "Vai entrar numa terra em que a verdade e a mentira não têm mais os sentidos que o trouxeram até aqui"; "As histórias dependem antes de tudo da confiança de quem as ouve, e da capacidade de interpretá-las"; "Só a verdade poria tudo a perder". E tantas outras citações interessantes que remetem a esse jogo que valem a pena serem sublinhadas no romance...

Porque é sobre a arte de criar e de fabular, da relação entre ficção e realidade, que se trata o romance. Da vontade de se escrever e de subverter a realidade pela escrita quando nada mais nos resta. A verdade sobre a morte de Quain vai, aos poucos, se desfazendo em outras teias.

Mas, claro, o destino de Buell, a sua solidão, é impossível não sermos tocados pelo seu destino. Todos nós somos solitários. Todos. Ainda que povoados de gente ao redor. Ainda que lotados de almas interiores, chega um momento da noite da vida em que só há o nosso próprio hálito diante de um espelho deserto, às vezes, não há nem o espelho... Sabemos que quando o homem nasce firma um contrato até a morte com a solidão. E, sim, a imagem do Quain e sua incomunicabilidade nos afetará, um dia ou outro, quando nós mesmos nos sentirmos um pouco desérticos e incompreensíveis...

Bernardo Carvalho em uma de suas entrevistas nos diz que o livro é também sobre a paternidade, que ela está latente, de um modo ou de outro, em todas as partes. Os índios, órfãos da civilização, o narrador e a sua relação desafetiva com o seu, o próprio Quain, afinal. Todos estão um busca do seu ou de algo que o substitua. Agora me pergunto se o narrador ou qualquer artista que cria, ou mesmo nós leitores, não somos também órfãos da realidade? E se nessa nossa falta, imersos nessa realidade que também sempre falta, não estamos a inventar, criando ou percebendo, algo melhor que a própria paternidade da realidade...

O artista é feito de buracos cravados pela realidade. O artista vê também buracos na parede da realidade. É nela que ele entra. É ele também um criador de buracos onde ninguém imaginava. É ele que, ao invés de abrir a porta, entra por onde ninguém ainda sabia ser possível. É ele, também, um criador de buracos no céu negro do guarda-chuva para fazer entrar um raio de sol, um ar, uma gota de chuva...
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Nessa arte de se criar buracos, temos também outro exemplo. Alan Pauls, escritor argentino, está escrevendo uma trilogia de romances sobre a ditadura ocorrida em seu país. Como escrever sobre algo eternamente debruçado e documentado? Pelos buracos possíveis inventados pela literatura. Assim, ele compõe a sua trilogia pela tangente da realidade, pelas veias abertas da sensibilidade. História do pranto (já lançado no Brasil), História do cabelo (em tradução) e História do dinheiro são os novos buracos inventados por Alan Pauls. Vale a pena dar uma olhada na produção desse grande escritor contemporâneo.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

13- Palavras como poeira...

Continuo a fazer as minhas leituras habituais, aquelas que programei já a um tempinho. Os Diálogos de Platão, a Ilíada de Homero, a Metafísica de Aristóteles, continuo nessa aventura que é descobrir um mundo antigo, o mundo grego, e trazer dele ainda muito sentido. Trago também muitas diferenças, muitas inquietações de como o homem mudou e de como, também, o homem continua o mesmo. Mas são inquietações que ainda não merecem ainda palavras precisas. E, convenhamos, já falei um bom tempo sobre os gregos por aqui. E já ficou chato, né? Bem, o negócio é o seguinte. Não tenho a menor ideia do que escrever, não vim com nenhum propósito, não tenho inquietação nenhuma, nem deslumbramentos.

Isso é também importante. Mesmo aqueles de alma inquieta e encantada gostam também de um período de marasmo total, sombra e água fresca, uma vista para o mar e nada para pensar. Não? Eu gosto. Ultimamente ando sendo tocado por uma certa serenidade. Um olhar um pouco mais complacente comigo mesmo, um vagar contínuo sem sustos e assombros, mas que mantêm a sua profunda forma de observar o movimento do mundo e o seu silêncio. Nunca tive uma semana tão serena e exemplar. Gostei dela. Mas também não vou gostar muito que ela fique se repetindo. Ora bolas, chega uma hora que até o exemplar cansa.

É engraçado isso de querer dizer as coisas. Escrever é uma eterna danação. Como é mesmo tolo isso de querer sempre se comunicar, né? Tem verdades que só podem ser sentidas e digeridas no silêncio.Porque a sensação que tenho é que não me aproximei nem um pouco do sentimento de serenidade que me atingiu durante essa semana. Ou pode ser isso também, posso estar tão feliz comigo mesmo que não sei ainda existir e me comunicar dentro dessa felicidade. Ou isso: a felicidade pode ser sem graça pacas. Ou isso: a felicidade talvez não tenha nada para ensinar. Será? Talvez eu é que não saiba tirar nada dela. E isso pode ser uma mentira também. Será isso a felicidade? Quando a gente encontra a felicidade a gente sabe que a encontrou? Beija e toca? A ama e quer fazer amor com ela? Mas quem disse que estou feliz? Será só isso, uma serenidade... E me lembro tanto da Clarice novamente...

Esse, sem dúvida, é um texto para ler e esquecer. Nada de significante para se reter. Sei disso, mas é também como a vida. E mesmo assim é um exagero querer comparar esse texto sem significância ao nada da vida. E fico me perguntando se realmente vale a pena escrever quando não se tem nada a dizer. Aumentando ainda mais a profusão de tagarelice, de contradições, de disparates que, como um turbilhão, a mídia nos lança. Mais um post, mais uma página. Para nada. Mas me decidi a escrever alguma coisa. Sem preparo, sem revisão. Seco e cru. Um texto para se engolir a seco. Sem água. Um texto desértico. Onde o leitor deseja escapar para não morrer de fome e de tédio. Palavras como poeira...