Escrevo para não esquecer. Primeiramente, para lembrar a mim mesmo, acima de tudo, das verdades que a gente descobre ao longo da vida. Para evitar a fluidez do pensamento. Das coisas que nos atacam e fogem como se levadas por uma correnteza de um rio, a correnteza do tempo. Para evitar aquele estado de perplexidade que nos falou Fernando Pessoa no seu poema Tabacaria: "Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu." Precisamos cravar a palavra no papel, incialmente. Depois, cravá-la na alma - uma tatuagem no espírito? -, na existência, utilizá-la como se utiliza um martelo ou uma faca. Cortar a existência com a palavra. Martelar a existência com a verdade.
E quando digo verdade aqui a coloco no sentido dos gregos, do seu sentido de verdade. Não essa verdade que conhecemos, a da adequação do sujeito que enuncia com o objeto enunciado. Não. Martelar a existência com a verdade é fazer um tributo à memória e ao não esquecimento. A verdade dos gregos como Alethéia: o não esquecido. Aquilo que por ser verdadeiro deve permanecer na existência. Assim é que, primeiramente, com os poetas (inspirados pelas Musas, filhas da memória) e, depois, com os filósofos, a Alethéia era pronunciada. Pois então: porque gastarmos tempos falando do ruim, criticando o ruim, quando o que na verdade vale a pena ser celebrado com a potência de nossa voz é a excelência, o melhor, o mais belo? Aquilo que é ruim o próprio tempo faz questão de exilar. Aquilo que não é verdadeiro o próprio tempo joga no esquecimento. E quanto mais tratamos de falar do ruim mais ele ganha força pela inversão do nosso discurso. A negação, o esquecimento, é a nossa mais bela forma de criticar. Porém, não estou aqui para negar e sim para afirmar.
E o que não quero esquecer jamais? O que esse texto quer celebrar? O que quero dizer, primeiramente para mim, e que me falta, e que vi, e que quero tê-lo?
Além de amar a arte e a filosofia, amo os esportes. É dele que tiro a questão de hoje, afinando, então, o meu discurso com o de Deleuze, no qual é preciso ir para os espaços não filosóficos para extrair materiais filosóficos. Esportes então. E mais propriamente o tênis. E, mais especificamente, um tenista: Rafael Nadal.
Quem convive comigo sabe que sempre torci mais para o Roger Federer do que para o Rafael Nadal. E isso é muito fácil de explicar: a genialidade a gente aprecia logo de cara. O Federer é um gênio do tênis. O homem que faz aquilo que sabe simplesmente por dom. Tudo lhe é natural. O movimento flui. A técnica lhe é imanente. É fácil apreciar o tênis do Federer como é fácil apreciar o belo, a harmonia. Mas me rendi ao Nadal. Ele não é um gênio. A técnica não lhe é natural...a técnica lhe veio depois de muito trabalho...e é dele que quero extrair alguma coisa...
Ver uma partida do Nadal é ver uma batalha de fúria. A fúria do homem em nome de seu limite. Cada corrida é um aposta contra o fracasso. E o tenista corre atrás da bolinha, como um louco, como um touro (O Touro Miúra como o chamam), numa Odisséia sublime em busca do máximo de si. E é aqui que ele ganha o meu grande elogio: ele nos mostra o que é tentar sempre estar na permanente excelência de si. E, não é fácil, sei e afirmo por experiência e risco: não é fácil estar no auge de si o tempo todo. Mas ele é a excelência da intensidade de si. Não o vemos baixar a guarda mesmo quando perde o ponto. Não o vemos desistir de uma bolinha sequer quando arremeçada contra a sua quadra. Vemos o seu poder de concentração em cada momento do jogo. Um poder de concentração lúcido e quase inquebrantável. É difícil, muito difícil, manter a intensidade de si. E é, geralmente nesse estado de concentração e luta, não contra o adversário, mas contra si mesmo, que ele, no ponto exato em que o outro perde para si mesmo e que se perde, ganha de todo mundo.
Pensemos numa vida. Na nossa. Quando é que estamos no nosso limite permanentemente? Ok. Menos, bem menos...em um dia: durante quanto tempo do dia conseguimos manter a nossa excelência, dar à vida o melhor de nós, nos doar com toda a intensidade a um ato? Sabemos que muito pouco, muita coisa nos tira dessa intensidade, preguiça, distração, tédio, sei lá o que mais. E quando simplesmente ainda temos força. Quando o nosso corpo está apto a ser mais, a ser tudo que quisermos...nós mesmos matamos essa potência, nós mesmos damos à nossa vida uma morte quase imperceptível da potência, uma forma preguiçosa de nos habituarmos a morrer...
Talvez a diferença entre os grandes e os medíocres seja essa tentativa em nome da intensidade com que nos doamos àquilo que tomamos para nós como nossa ação. Essa capacidade de ultrapassar. Tirar, talvez, desse texto um objetivo modesto: chegar ao fim do dia, de todo dia, e dizer: cheguei no meu limite. Fui até onde deu naquilo que me dispus. Até onde o músculo se contrái e endurece pedindo descanso. É o descanso que deve falar por si e não nós por ele. Sabemos que não é fácil. Mas busquemos essa intensidade de si. Essa força, essa capacidade, a potência de existir.
uma "tatuagem no espírito"? a tatuagem é uma cicatriz...
ResponderExcluirtriste pensar que quase nunca conseguimos extrair nosso suprassumo, mas talvez ninguém consiga estar no auge TODO dia! será que o Nadal consegue? não acredito! ele deve se dedicar muito, como todo esportista profissional, como todo profissional de qualquer área, mas sempre tem aqueles dias cinzas, nublados, na vida de qualquer um
às vezes também me sinto medíocre, mas temos q persistir e nos autoajudar e buscar fazer diferente, fazer melhor, como todo esportista busca, no seu treinamento de todo dia, na sua busca diária pela excelência...
mas lembre-se também que ninguém está no auge o tempo todo. o auge sempre precede o declínio. lembre-se do lugar comum que já é a "montanha russa"...
MUIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIto bom! Seu texto vai me ajudar muito, amigo! Admiro essas pessoas que lutam até o exaurir das forças ...e ainda levantam, como num filme de suspense! Você pensa muito ,moço!
ResponderExcluirO que diferencia as pessoas é a maneira como usam sua inteligência a seu próprio favor. Não nos basta tê-la e só. O que nos diferencia é a maneira como manipulamos o nosso "Nadal" particular.
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