Antes de escrever esse texto percorro os inúmero blogs que tratam do livro. E eles dizem mais ou menos a mesma coisa: um pouco à moda de cada um o tema do livro. Mas encontrei uma variação interessante no http://peregrinacultural.wordpress.com/2008/07/08/a-elegancia-do-ourico-muriel-barbery/, a variação que aborda o jogo de imagens que faz Barbery em relação com os quadros do Magritte. E a suposição de que o nome da personagem principal, Renée, seja uma homenagem ao pintor. E desta homenagem uma pista interessante para se percorrer o romance.
E a dica vale. É sem dúvida no jogo do ocultamento que o romance encontra um dos seus principais motes: eu sou; mas a minha aparência não diz realmente o que eu sou. E você que me olha com a sua ideia de mim, que não se mantém apenas no presente mas em todo o estereótipo da visão, é incapaz de dizer além do que vê, é incapaz de supor além do visível um mundo. Uma metafísica da existência se vislumbra para além da normalidade do ser, para além do cotidiano, para além de meras concierges e crianças. Assim, Paloma e Renée juntas. Juntas como sempre estiveram. Mas além desse jogo de espelhos partidos onde o que se vê é sempre outro, onde a crítica do olhar é sempre severa (e aqui vale fazer uma singela homenagem ao Saramago que na epígrafe do Ensaio sobre a cegueira nos diz: Se podes olhar, vê. Se podes ver, repare. Nessa importância de ter olhos quando todos os demais cegaram...), onde o que é oculto parece dizer mais que o explícito, onde a profundidade ganha da superfície é que a escritora francesa aponta para as congruências da existência...
Que congruência? Esse é um dos títulos de um dos capítulos do romance. E é dele que tento partir para abordar o romance. Mas antes de tentar escrutinar as congruências do romance quero apontar pequenos souvenirs literários que em nada mudarão a leitura ou releitura do romance. Bijuterias, portanto, para o apetite da alma: 16 de junho é o dia que Paloma decide se matar. É justamente nesse dia que é desenrolado todo o romance Ulisses de James Joyce. Bijuteria de camelô: James Joyce escolheu esse dia para tecer o romance porque foi num 16 de junho longínquo que ele conheceu a sua mulher Nora Joyce. Será que ela se deu conta disso?
Bem, isso não tem a absoluta relevância.
Outra congruência é com Albert Camus. Também um filósofo que escreve romances. E ele mesmo diz que para filosofar era preciso escrever romances. E ela o faz muito bem. Paloma parece, desde o princípio possuir essa afinidade (eletiva?) com a filosofia de Camus. A vida não tem sentido, ela é absurda por excelência e, simplesmente, não vale a pena viver. Camus, no Mito de Sísifo, começa com essa questão. Não interessa mais nada, se a vida tem cinco ou dez dimensões, se a alma tem cinco ou dez vida, nada disso importa, o que vale a pena saber é se essa vida, a única vida que temos a absoluta certeza de existir, vale a pena ou não.
É para colocar a vida no limiar do abismo que Paloma escreve os seus pensamentos profundos e movimentos do mundo. É desse ato de olhar para escrever, e para escrever é preciso olhar além do olhar às coisas, que Paloma consegue extrair da vida as congruências que a fará não mais desistir da vida. E o que percebemos da natureza da congruência é que para acontecer ela exige essa harmonia natural que a faz perpétua e frívola, no tempo exato de cada coisa. Significativa é a passagem em que Paloma encontra o THE movimento. Nele, ela encontra a sua lei que a protagonista perseguiu durante todo o romance, a perfeição de alguma coisa que valesse a pena viver:
"Eu, ao olhar aquela haste e aquele botão, intuí num milésimo de segundo a essência da Beleza. Sim, eu, uma pirralha de doze anos e meio, tive essa chance inacreditável porque, hoje de manhã, todas as condições estavam reunidas: mente vazia, casa calma, lindas rosas, queda de um botão. E foi por isso que pensei em Rosard, sem muito compreender no início: porque é uma questão de tempo e de rosas. Porque o que é bonito é o que captamos enquanto passa. É a configuração efêmera das coisas no momento em que vemos ao mesmo tempo a beleza e a morte.
Ai, ai, ai, pensei, será que isso quer dizer que é assim que temos de viver a vida? Sempre em equilíbrio entre a beleza e a morte, o movimento e seu desaparecimento?
Estar vivo talvez seja isto: espreitar os instantes que morrem" (Pág.: 293)
E quão difícil é, e cada vez mais, habitarmos este instante em que todas as condições estão favoráveis para realmente captarmos uma epifania nas pequenas coisas...talvez numa viagem com cabelo ao vento conseguimos olhar para uma paisagem e sentir o movimento e seu desaparecimento com essa eternidade e frivolidade natural dá própria essência do tempo....talvez...
Se Paloma procura a congruência do mundo, a harmonia das coisas belas (Kant, na sua Crítica da faculdade de juízo diz que o belo é a harmonia, é o acordo tácito entre as nossas faculdades, a comunhão dos sentidos que o objeto sentido faz... - estou simplificando demais o Kant, coitado, deve estar socando o túmulo de tanta raiva de mim... mas é porque acho que esse texto vai ficar longo demais e você já deve estar se cansando dele...), Renée vive, mesmo sem saber, essa harmonia do destino, a congruência da beleza enredada em si.
Toda literatura é uma doença, todo livro é um livro doente, na voz de Antônio Lobo Antunes. No contraponto intrínseco, toda literatura é uma saúde, uma renascimento, uma tentativa, uma linha de fuga para sair do lugar em que se está. Movimento do ser pela escrita, pela invenção de personagens e dos afectos.